Regina Sardoeira
Neste mundo em que, desencantados e sérios, vamos arrastando as horas para afirmarmos, com frequência, que vivemos, a noite transforma-se num espaço /tempo de privilégio.
Interrogámo – nos muitas vezes sobre a importância crucial da hora nocturna na vida dos homens; e descobrimos algumas referências importantes.
Um dia, alguém disse estas palavras plenas de sentido: “Gosto de andar de noite porque as pessoas que encontro nas ruas são ladrões, vagabundos, prostitutas que se assumem como tal; de dia, cruzamo-nos também com eles, só que disfarçados e camuflados debaixo da luz. E já não somos capazes de distinguir”.
Noite – hora em que a verdade se desnuda e as máscaras caem, umas atrás das outras: eis uma primeira conclusão que as palavras citadas permitem, cabalmente, tirar.
A noite – muito mais que o dia – permite ver, porque convida a um intenso relaxamento interior em que todas as tensões, se não eliminadas por completo, se neutralizam e se interrompem, pelo menos até ao alvorecer.
Mas a noite, paradoxalmente, predispõe ao culto do mistério pelas sombras que lança sobre recantos, antes luminosos e doravante marcados pela interdição. No noite pontifica a ambiguidade e abrem – se os portões da nostalgia : fora do círculo de luz que o candeeiro abre é o território da surpresa e do medo.
Tornou-se evidente que falamos da noite citadina, para ela resvalamos quase sem querer e é ainda num arrastamento involuntário que continuamos fluindo pelos canais nocturnos onde o vício desliza. Porque a noite das cidades, correndo nas avenidas, pulsando, ao acaso torpe dos becos, traz emanações viscosas de males e de chagas. E, às vezes, quando surpreendemos o rictus anquilosado do habitante da noite, perguntamo-nos, com angústia, que vírus projecta esses seres para a lenta corrupção física e para a degradação morosa e subtil da seiva intelectual. Só encontramos uma resposta pertinente e ela vai desembocar nos mesmos canais: os da auto-procura, os do afrouxamento da tensão, os da sede infinita da liberdade.
Mas a noite empurra os homens para fora dela, para os antros onde a luz se abre numa penumbra dúbia, para os espaços abrigados onde a noite se desvirtua na intermitência fria do néon.
É assim o homem: paradoxo personalizado, fugindo da ordem, ciosamente esculpida em séculos de organização social, para as sendas onde tudo se subverte.
Nós falamos porque lhe suspeitamos a aura mágica e porque, uma vez por outra, nos sentimos envolvidos na sua poderosa emanação. E, embora rejeitemos, com um ricto de desdém, o olhar mortiço dos que cultivam a orgia viciosa dos antros nocturnos, também nos agrada ver a noite por dentro e senti – la fluir nos canais por onde corre a nossa seiva vital. Porém, vemos que a noite é ainda território privilegiado do masculino – em toda a acepção da palavra. Quando a mulher se aventura no limiar da obscuridade e ultrapassa as fronteiras exíguas do círculo da luz, torna-se prisioneira de uma interdição e é instantaneamente conotada e reduzida a uma esfera aquém e à margem de roda a respeitabilidade. Instrumento de prazer, condição do êxito da orgia que a noite desvenda, a mulher, ao penetrá-la, torna-se conivente com a aura masculina que a noite descerra. E assim o mito da escuridão não cessa de crescer para nós que o suspeitamos por detrás da vidraça.
E depois há a noite dos poetas. Mas o poeta é uma coisa e a seiva que lhe escorre da pena, transformada em palavras, outra realidade em tudo diferente. É o homem e a obra e um abismo entre eles, sem qualquer hipótese de ponte ou afrouxamento de distância. E assim, a noite deles é a de todos, só que transfigurada na palavra e na voz.
Falamos da noite e quase não nos lembrávamos do sono. Mas, se o não fazíamos, tínhamos uma boa razão – é que o sono é a negação da noite, o olvido do medo que a sombra da insónia arrasta, a aceitação da derrota que nos impede de vigiar sempre. O sono extravasa das regiões nocturnas e torna perene, pela via do sonho, a trepidação diurna e o esplendor castrante da luz.
Falámos da noite, quando era dia e tudo se agrupava à nossa frente ordenado e rectilíneo devido à luz; falámos dela com a nostalgia própria dos que permanecem fora do seu ventre negro. Era preciso mergulhar nela até ao âmago a fim de nós munirmos do material capaz de adjectivá-la cabalmente. Porém, se acaso o fizéssemos, acabaríamos saindo embotados ou deslumbrados e, inevitavelmente, enredados na metáfora.
Deixemos então que pontifique o enigma que continua a pertencer -lhe, apesar do desnudamento que, a espaços, a própria sombra faz eclodir.