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Cultura, Literatura e Filosofia

DEFINIR CONHECIMENTO E DESEMBOCAR NO SILÊNCIO

Regina Sardoeira
Tenho-me debatido, até ao limiar da insónia,  com uma questão filosófica (ou pseudo-filosófica) cuja decifração deveria estar realizada em mim, de uma vez por todas, mas que se enreda até à tontura sempre que me detenho nela, uma e outra vez. Trata-se da definição de conhecimento.
Conhecer é apanágio do ser humano e certamente ninguém duvidará que todos temos um acervo de ideias que ao longo da vida vamos adquirindo e a que chamamos conhecimento. Conhecer é ter noção de, ter memória de,  ter uma ideia de (…), etc.
Várias faculdades humanas concorrem para que se dê o fenómeno do conhecimento.  E, exactamente porque é um fenómeno, podemos tratá -lo como um produto resultante da intervenção de dois factores imprescindíveis : o sujeito e o objecto.  O sujeito é aquele que conhece e, por força das suas capacidades, se dirige ao objecto para o desvendar,  num acto de apropriação das suas manifestações. Apropria – se, pois, delas, retém  as respectivas representações que, uma vez registadas na memória, constituem o conhecimento.
As faculdades aqui implicadas são os sentidos,  caso o objecto em questão seja uma coisa dada à apreensão sensorial, a razão, que articula os dados sensíveis,  a imaginação, que supre o que não é dado, acrescentando -lhe uma visão ideal, a memória, pela qual é efectuado o arquivo das representações dadas.  É, para todos os efeitos, um processo complexo cuja efectivação nos diz que o sujeito apreendeu qualquer coisa que será capaz de descrever e identificar. Mas será que essa imagem do objecto, no sujeito, essa representação,  portanto,  equivale, na íntegra, ao objecto que esteve na origem da apreensão realizada? Será que as determinações do objecto são desveladas, por inteiro, ao sujeito, nesse trânsito de uma esfera – a do sujeito- para a outra – a do objecto?
Tais esferas permanecem estanques,  o objecto não perde a sua especificidade concreta,  transitando materialmente para a esfera do sujeito,  e o sujeito, ainda que reforçado do ponto de vista intelectual, permanece distinto do objecto.
Sendo assim, que relação existe, de facto, entre estes dois actores de um episódio cognoscitivo, se, no final,  cada um persiste encerrado em si?
Dizemos saber isto e aquilo, dizemos conhecer. E contudo que valor tem tudo o que dizemos saber e conhecer e mais: que nome daremos ao conjunto vasto de ideias,  memórias,  percepções,  sonhos (…) que povoam a nossa mente e nos possibilitam aceder ao grau de seres racionais?
Conhecer é ver,  cheirar,  ouvir?  Conhecer é crer ? Conhecer é ter noções claras acerca de tudo o que nos cerca e de nós mesmos?
Se é ver,  cheirar,  ouvir (…) , então o conhecimento não passa de uma amálgama empírica de sensações diversas; se é crer, resulta de capacidades outras que nos autorizam a dispensar as sensações, fazendo de nós seres transcendentes;  se é ter noções claras acerca de tudo,  somos então obreiros de um mundo que, por essa mesma razão,  deveria ser perfeito.
Acontece que o erro intromete-se amiúde nas nossas percepções, as crenças nem sempre podem ser validadas, e a clareza das noções que vamos formando é, frequentemente, ensombrecida.
Diz uma certa definição de conhecimento, designada como sendo tradicional,  que o conhecimento é , justamente, “uma crença verdadeira justificada “. E por causa deste enunciado cujas linhas tenho dificuldade em deslindar a minha mente tem feito consideráveis rodopios.
Se o conhecimento é uma crença verdadeira,  por que meios foi obtida esta verdade? O que é,  afinal, a verdade que o sujeito adiciona à crença e por que meio chega a obtê -la?
Digamos que todas as noites me deito com a convicção de que no dia seguinte o sol nascerá, devolvendo – me a luz. Uma crença verdadeira é deste teor?  Mas,  afinal,  como sei ( ou como creio ) que à noite, em que me deito para dormir, vai suceder – se, inevitavelmente, o dia seguinte? Sei, por um lado, muito basicamente,  que essa circunstância ocorreu todos os dias da minha vida, que oiço os outros referirem – se ao facto de modo idêntico ao meu, de tal modo que,  ao que tudo indica,  sempre foi assim desde o início dos tempos e, na minha crença, continuará a ser. O hábito,  portanto,  é o critério de verdade desta crença e de muitas outras a que chamamos conhecimento.
Se, pois,  as crenças em que o homem baseia o conhecimento são verdadeiras, visto decorrerem da experiência individual e colectiva e não admitirem excepção, para quê ou como justificá -las? Se eu sei que inevitavelmente os dias se sucedem às noites,  não somente porque a isso me habituou a experiência, mas também porque as leis da física, da astronomia,  da cosmologia assim o estabeleceram há muito, a minha crença está, desde logo, justificada por múltiplas razões. Não terei necessidade de me deitar à noite na dúvida acerca das possibilidades da emergência do dia seguinte iluminado pela luz do sol e esperar pela manhã para poder justificar uma crença que postulo como verdadeira, pois, se  estou na dúvida, é porque me distraí ou esqueci todos os dias da minha vida em que o sol nasceu efectivamente, ignorei o testemunho dos outros,  a história e a ciência e não estarei, por isso, de mente sã. Mas se tenho uma crença verdadeira de que o dia nascerá, sem dúvida, então será a mais vã das tarefas justificar o que já é verdadeiro.
Tenho reflectido bastante sobre esta definição de conhecimento, a qual é reportada a Platão e ao seu diálogo Teeteto. Fui reler essa obra e dela retive o excerto final:
“(…)Sócrates – Conhecer é adquirir conhecimento, não é ?
Teeteto – Certo.
Sócrates – Logo , se perguntarem a esse indivíduo o que é o conhecimento, ele responderá que é a opinião certa aliada ao conhecimento da diferença. Pois a adjunção da explicação racional seria isso mesmo, de acordo com a sua explicação.
Teeteto – É evidente.
Sócrates – Ora, seria o cúmulo da simplicidade, estando nós à procura do conhecimento, vir alguém dizer-nos que é a opinião certa aliada ao conhecimento, seja da diferença ou do que for. Desse modo, Teeteto, conhecimento não pode ser nem sensação, nem opinião verdadeira, nem a explicação racional acrescentada a essa opinião verdadeira.
Teeteto – Parece mesmo que não é.
Sócrates – E ainda estaremos, amigo, em estado de gravidez e com dores de parto a respeito do conhecimento, ou já se deu a expulsão de . tudo?
Teeteto – Sim, por Zeus! Com a tua ajuda, disse mais coisas do que havia em mim.
Sócrates – E não declarou nossa arte maiêutica que tudo isso não passa de vento que não merece ser criado?
Teeteto – Declarou. (…)”
PLATÃO,  TEETETO
Percebi que o que está subjacente à definição de conhecimento como “crença verdadeira justificada ” reside nas próprias palavras usadas para definir. Elas possuem uma existência concreta anterior à crença e à verdade que possibilita a justificação.  Mas se as palavras são anteriores às coisas que enunciam e não as suas enunciadoras, isso significa que vogamos numa impossibilidade de concluir com rigor – aquilo que em linguagem filosófica se designa como aporia. Se as palavras, o logos, portanto,  são entidades anteriores ao mundo e ao homem, a sua origem é pois,  transcendente : elas são seres inteligíveis ou eidos,  essências imateriais criadoras das coisas que são a sua cópia.
A definição de conhecimento citada aponta para uma metafísica, onde a justificação é da ordem do inteligível que, de modo nenhum, pode ser discernida pelos limites da nossa humana natureza.
Caminhando pelos séculos, a aporia platónica desembocou em Wittgenstein que afirma:
“Os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo “
e ainda:
“A solução do enigma da vida no espaço e no tempo encontra-se fora do espaço e do tempo.“
e mais ainda:
“O que se pode dizer pode ser dito claramente; e aquilo de que não se pode falar tem de ficar no silêncio.“
Façamos,  pois, o silêncio.

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