Regina Sardoeira
“8. Imagine que submetia as suas opiniões ao teste da dúvida proposto por Descartes. Qual das opiniões seguintes seria a mais resistente à suspeita de falsidade?
(A) Existem outras pessoas no mundo.
(B) Neste momento, ouço uma voz grave.
(C) Neste momento, não estou a sonhar.
(D) Dois vezes seis é igual a treze menos um.”
Eis aqui um exemplo das perguntas de escolha múltipla do exame de Filosofia de 2019.
Em primeiro lugar, os alunos estudam Descartes no contexto da problemática da origem do conhecimento e, inevitavelmente, são conduzidos ao método da dúvida, cujo objectivo é alcançar uma verdade que seja evidente, e logo indubitável, e que contenha, ainda, o critério de verdade requerido para a fundamentação do saber.
A dúvida cartesiana não se exerce sobre opiniões, ou leis científicas, ou regras morais mas é um método de auto-análise, em que Descartes (e apenas Descartes) põe em causa o valor dos seus instrumentos de conhecimento, a saber, os sentidos e a razão. Ele não questiona se pode saber isto ou aquilo mas se as fontes do conhecimento, que ele reconhece possuir, lhe garantem a evidência que procura.
Conclui muito simplesmente que não garantem, de facto, na medida em que são falíveis, enganam-no frequentemente, pelo que não podem constituir o critério de verdade que ele busca. Não se trata, pois, de duvidar, em particular, desta ou daquela ideia ou percepção ou opinião, mas de analisar radicalmente o valor das faculdades de conhecer.
A primeira verdade que resiste, de facto, à dúvida, é o “cogito” ou “penso, logo existo” , uma intuição do sujeito Descartes, que diz respeito a si próprio, exclusivamente, e que, por essa razão, o mergulha no solipsismo: por esta via, Descartes não sai dos limites da sua subjectividade. Porém, analisando a proposição, “Eu penso, logo eu existo “, Descartes descobre que ela é indubitável, por ser clara ( sem dúvida que para pensar é preciso existir e que por mais génios malignos que se inventem e nos segredem que isso é falso, eles, os génios malignos, não poderão enganar alguém que não exista) e também distinta, pois demarca – se, em absoluto, de todas as outras, contaminadas pelo erro derivado da limitação inerente às fontes do conhecimento. Então, essa descoberta permite-lhe encontrar o critério de verdade que pode ser enunciado deste modo : é verdadeiro tudo o que me aparecer com absoluta clareza e distinção. Essas verdades existem em pequeno número porque apenas essa, “penso logo existo”, tem esse carácter, bem como algumas verdades matemáticas e outras de carácter metafísico, a que ele chega depois.
Logo, a pergunta 8 do exame de Filosofia, está errada, logo à partida, quando propõe ao aluno que submeta “opiniões ” ao teste da dúvida de Descartes.
Mas, suponhamos que poderia aplicar – se a dúvida metódica de Descartes às opiniões apresentadas nos itens, para, desse modo, tentar perceber qual deles resiste ao exercício voluntário da dúvida. Vejamos.
“Existem outras pessoas no mundo.”
O enunciado remete para o ser pensante que está, no momento, perante a prova de exame? A palavra “outras” significa “para além dele próprio”? Não está, portanto, sozinho na sala porque existem outras pessoas? Ou referirá todos os outros, que não aqueles que pode ver no momento?
Enunciado muito obscuro, como pode ver – se. Mas esta obscuridade permitirá ao aluno decidir que não é o item correcto, pois não resiste ao teste da dúvida?
Não, decididamente. Descartes não duvida tendo em mente proposições obscuras, antes o faz em relação às faculdades de conhecer, como já foi visto.
“Neste momento, ouço uma voz grave.”
Se a dúvida cartesiana houvesse sido exercida sobre o senso comum e, portanto, visasse uma sensação em particular e não o valor integral dos sentidos, talvez esta proposição pudesse ser excluída como resposta; porém, a dúvida é racional, mais, é um artifício da razão, não incide sobre a especificidade das sensações, logo não deve reportar – se a Descartes.
” Neste momento, não estou a sonhar.”
O terceiro item pretende abordar o carácter radical da dúvida metódica quando, após tê-la exercido em relação aos sentidos e à razão, Descartes estende a necessidade de duvidar à indistinção sonho/vigília que pode acometer o sujeito pensante. De novo ocorre o erro de apresentar uma proposição relativa a um particular momento e não à incapacidade de distinguir o sonho da vigília, não em um, mas em todos os momentos.
Por último, o item que o corrector dos exames vai ter que considerar certo :
“Dois vezes seis é igual a treze menos um.”
Trata-se em princípio de uma operação matemática. Mas sê -lo-á?
Em geral , um exercício de matemática não usa esta simbologia, que é, obviamente, a linguagem das palavras. Para ser matemática, de facto, teria que ser expressa assim:
2×6=13-1
Observemos, pois, os dois enunciados : num caso e no outro estamos, efectivamente, perante “opiniões ” (porque, segundo o autor da prova este item é uma opinião ) resistentes à suspeita de falsidade? É facto assente que, sem dúvida, dois vezes seis é igual a treze menos um?
Trata-se de um enunciado verbal e incorrectamente formulado (deveria ser “duas vezes seis”)+ que pode não fazer qualquer sentido, caso não seja transposto para a linguagem matemática; e o estudante de filosofia não é obrigado, no contexto da disciplina em que está a ser avaliado, a efectuar tal transposição.
Logo, o item que os critérios de correcção do exame de Filosofia consideram ser uma “opinião ” que resiste à suspeita de falsidade e por isso é a resposta correcta, faz tanto ou menos sentido que os outros três.
Bem sei que Descartes foi um eminente matemático e que na sua obra, Discurso do Método, depois de encontrar o critério de verdade no “cogito ” e de o justificar com a garantia do seu criador, em nós, que é, nem mais nem menos, que Deus, afirma que possuímos certas ideias, claras e distintas, em nós, impressas na alma à nascença e logo inatas. São elas o cogito, a ideia de Deus e algumas demonstrações matemáticas. Poderá partir – se daqui, desde logo, para a convicção de que uma opinião como esta (dois vezes seis é igual a treze menos um ) por ser supostamente matemática resiste à suspeita de falsidade?
A pergunta diz : “a que mais resiste à suspeita de falsidade ” . Logo, o objectivo da questão não é saber qual das quatro “opiniões” seria verdadeira, mas qual é mais difícil de negar por resistir à suspeita de falsidade. Confesso que não sei responder. Confesso que a dúvida metódica de Descartes não me permite levar a sério um tal questionamento. Confesso que estes itens não encerram qualquer validade filosófica.
Todo o exame de Filosofia, apresentado este ano aos jovens do ensino secundário que, por opção, escolheram fazer Filosofia, que é disciplina de formação geral, e não uma das outras a que são obrigados e são de formação específica(?), enferma de graves incorrecções. Quase todas as perguntas de escolha múltipla são ambíguas, pelo que, optar obrigatoriomente por um item, excluindo os restantes, é filosoficamente incorrecto. A filosofia é a disciplina do pensamento, da crítica, da argumentação: é este o seu papel na vida escolar dos alunos do ensino secundário. Os temas dados e os filósofos seleccionados como obrigatórios devem ser pretextos para o exercício da análise, da crítica e da argumentação , nunca fins em si mesmos. Se o aluno perceber, por exemplo, o valor paradigmático do método de Descartes ou da ética kantiana, e for levado a aplicar os seus preceitos na aula, mas com extensão para a vida, sairá acrescentado e capaz, ele mesmo, de os seguir ou rejeitar, consoante a sua própria construção argumentativa. Mas memorizá-los somente, ignorada a pertinência de os tomar como modelo, primeiro, de os rejeitar depois, com fundamento crítico, logo pessoal, é inútil e pode ser pernicioso.