Cultura, Literatura e Filosofia

PÁGINA EM BRANCO

Regina Sardoeira
Página em branco. Estertor de ideias neste anoitecer plácido com ecos auspiciosos de Verão.  A turba já invadiu as ruas e esplanadas, e é uma turba híbrida feita de vultos com muitas formas e linguajando de muitos modos.
Descobri que sou avessa às turbas e relaciono – me bem com a sentença de Kierkegaard que escreve: “A multidão é mentira, a verdade está no Indivíduo. “
No âmago da multidão que, em si mesma, não tem identidade, o indivíduo perde – se,  confunde – se – nunca se encontra, nunca adere ao esclarecimento. Apenas no regresso a si, no mais profundo segredo e silêncio,  pode o indivíduo perceber quem é,  já que imbuído na multidão foi-se alienando, foi – se revendo no rosto e nos gestos dos outros, mera construção, à superfície,  criada para a exterioridade.
Porém,  não tenhamos dúvidas,  vivemos um tempo de múltiplas algazarras e corremos para as ruas sedentos do contacto transpirado com muitos corpos em euforia.
Dizemos,  depois,  que foi bom, que aquela multidão, com a qual fizemos número, esteve em sintonia connosco,  experimentou a alegria e o entusiasmo que também por nós perpassou, comungou do nosso sentimento, que, enfim, não estivemos (não estamos) sozinhos .
“A verdade está no Indivíduo ” diz Kierkegaard,  e contudo, essa verdade, oculta nos recessos íntimos de cada um, tem absoluta necessidade da turba,  a tal mentira,  se quiser reconhecer-se.  Paradoxo?!
Sim, paradoxo, porque não?  O indivíduo,  enquanto verdade, na genuinidade de si, precisa da multidão,  enquanto mentira, para episodicamente ser outro, na sua, também verdadeira,  alteridade.
Somos e não somos em simultâneo,  envolvemo – nos no nosso próprio silêncio e depois dispersamo – nos em grãos de ruído, como parte intrínseca do tumulto.
Esta antítese vive com o homem desde os seus primórdios, os mitos ancestrais narram celebrações e festas nas quais o indivíduo se dissolve no todo para encontrar-se depois, no umo. O que torna diferente este nosso hodierno tumulto,  dos rituais que engendrarem a humanidade que somos, é uma ausência gritante de conteúdo nas aglomerações exibidas em praças e arenas e a mistura destemperada de símbolos.
Decidimos homenagear um santo, um herói,  uma data? Sim,  preparamos, a propósito,  uma festa. Mas eis que,  de repente, o santo, o herói,  a data deixam de ser o que deviam ser, tudo se confunde, quem se juntou à festa nem sabe bem o que está a festejar,  nem entende rituais ou símbolos.  Está ali e basta.
Não saberei dizer se está certo ou errado este procedimento das massas, com laivos de irracionalidade.  Nem é ajuizar que importa.
Resta somente o esforço de prestar atenção, a nós mesmos, imbuídos da agitação festiva, aos outros que a nós se amalgamam, ao que fica, depois, como resíduo destituído de sentido. Resta somente tirar daqui, destas frequentes explosões de euforia colectiva, o significado com que poderemos perceber quem somos de facto, nós,  esta espécie guindada ao expoente máximo da superioridade,  para deslizar de modo insensato no mais inferior dos atoleiros.
Não dei exemplos porque  pouco importa concretizar ou tomar partido, pouco importa apontar o dedo, nem é disso que se trata. Importante é não permitirmos que a mentira da multidão, em ritos de eufórica e nem sempre avisada celebração,  corrompa a verdade do indivíduo que encontraremos sempre, à noite, como nossa fiel e única companhia.

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