Cultura, Literatura e Filosofia

CELEBRAR O DIA

Anabela Borges

Meados de Julho. É domingo e escrevo à hora tardia em que recebemos a visita de um pouco de calor.  O Verão vem-se escondendo e vai-se mostrando apenas por entre nesgas tímidas de céus encobertos.

Chega então um pouco de calor, e todos os passos se conjugam para um aguardado sentimento de comunhão, de abrigo ao pastoso silêncio da mente em conjugação com os ruídos harmoniosos da natureza. E nessa hora quase santificada, eu vou para debaixo do telheiro junto ao jardim, de onde avisto, na pequena colina do monte junto à casa, três velhos pinheiros, três robustos, altos, imponentes pinheiros. Tomo a brisa, os pontos luminosos, um a um, da luz do Sol que me ilumina e aquece o rosto cansado, e deixo-me estar naquele estado de natureza, mente e corpo ensemble. Sem querer, sem o saber, medito, reflicto, inspecciono coisas, pensamentos, momentos, fracções dentro de mim. E aquele momento, aquele tempo de clara distensão, traz-me uma memória antiga de quando eu era apenas dez reis de gente, sem grandes dores ou preocupações: era princesa alada num tempo sem tempo em que tudo o que eu quisesse era meu, quando tudo o que eu realmente tinha cabia no bolso das calças apenas. Aí começo a pensar na vida, sem me cansar, sem maçar a alma, sem ganhar vestígio de dor ou stress, apenas deixando-me levar por essa luz que me aquece as faces e pelas sombras e os tremores da brisa em redor, por essa natureza antiga, física e psicológica que me guarda e transfigura.

Não posso saber das fortunas nem de todos os desaires do Universo, mas penso e sei de algumas pequenas coisas que trazem luz aos olhos do homem comum. Sei de clareiras mansas em bosques sombrios. Sei de rios que atravessam um abismo de infernos para irem desaguar de encontro ao mar. Sei de céus nocturnos cobertos de luar e bondades que se soltam ao abrir de certas mãos. De sonhos que habitam o mais intrépido e o mais acanhado coração. Sei de magias talhadas por dedos que não podem estar quedos nunca e de árvores que tecem enredos sem fim debaixo da terra e os continuam nos braços do ar. Sei de flores que florescem em rochedos e sei que há segredos que são guardados nos olhos do esquecimento por via de medos que os homens não querem soltar. Sei que há – apesar de tudo, do que se fala e do que está mudo, apesar de tudo há – uma harmonia entre toda a sorte de bichos e o berço que os acolhe – de todos o homem o mais voraz. E nessa harmonia cabe o calor e a sombra do dia – há um arrastar de vozes como ondas batendo dolentes no molhe cansado – e anjos capazes de cânticos nunca antes experimentados.  Homem nenhum sabe de completudes divinas, nem de toda a luz nem toda a sombra, nem sabe todos os abismos nem todas as glórias. Homem nenhum verá apenas vitórias – homem nenhum, apenas desgosto traçado no rosto – nem só memórias e hábitos ficarão retidos no vulto do tempo. Tempo finito.

Os deuses não têm piedade, por isso é que são deuses, e todos os homens têm as suas fraquezas, apenas uns escondem-nas melhor do que outros.

Aproveitar o que existe de bom, por pequeno que seja. Ouvir uma música bela nem sempre nos alegre o dia. Por vezes é necessário desligar o rádio e levar a alma a passear.

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