Sílvia Ferreira de Carvalho
Atualmente, a violência doméstica é um tema incontornável da nossa sociedade, uma vez que todos os dias somos confrontados com notícias sobre este tema.
O crime de violência doméstica encontra-se previsto e punido no artigo 152.º1 do Código Penal e muitas vezes o teor do mesmo não nos parece bastante, mas se olharmos para a evolução legislativa do mesmo percebemos que este resulta de lutas importantes e complexas, apesar de ainda insuficientes, até porque a autonomização do crime de violência doméstica só teve lugar com a Lei n.º 59/2007. A existência de resistência em efetuar mudanças nesta matéria foi sempre percetível, desde logo se pensarmos que não foi unânime a expressão de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, que faz parte do corpo do n.º 1 artigo 152.º do Código Penal, pois havia quem entendia que se impunha que existisse reiteração do ato.
Um ponto essencial e do qual não nos podemos desviar é o de que este é um crime complexo, nomeadamente, por causa das relações existentes entre as pessoas e mesmo sendo um crime público, ainda é encarado, por muitos, como um problema privado.
As próprias circunstâncias do crime são complexas, pois na maioria dos casos, tudo se passa em casa, logo por norma não existem testemunhas, ou tragicamente, na maioria das vezes, se existem são os filhos menores. Logo, o processo judicial centra-se nas declarações da vítima e muitas vezes esta acaba por não querer prestar essas declarações, por medo, dependência económica, emocional ou até pela fé que o agressor mude.
Quando olhamos para os dados da violência doméstica e das mortes nesse contexto, apercebemo-nos que os números dos últimos anos são alarmantes e os deste ano parecem vir a ter um resultado igual ou ainda mais dramático. Sabemos que os dados estão longe de estar completos e que a realidade é ainda pior do que a descrita nesses números.
No dia 28 do mês transato, a Comissão Técnica Multidisciplinar para a Melhoria da Prevenção e Combate à Violência Doméstica, apresentou o Relatório Final, nos termos do n.º 3 da RCM n.º 52/2019, de 6 de março. Dentro do âmbito e dos objetivos deste relatório está a necessidade de recolher, tratar e cruzar dados referentes à violência contra as mulheres e violência doméstica. Não há necessidade de explicar a importância desta Comissão, pois, infelizmente basta abrir os jornais ou ver um telejornal para percebermos a dimensão que o problema da violência doméstica atingiu.
Todavia, a leitura da realidade não pode ser feita através de perceções da comunidade, da informação dos órgãos da comunicação social ou ainda pior do que é veiculado pelas redes sociais. Neste contexto, é inevitável começar a traçar um novo caminho, que nos permita ultrapassar a insuficiência da informação, a dispersão da mesma, assim como o extenso período de tempo para a organização dos dados e por último a dificuldade no conhecimento público destes.
No ano transato, no Relatório publicado pelo Instituto Europeu para a Igualdade de Género, surgiam recomendações no sentido de uma melhoria dos dados recolhidos pelas polícias e pelo sistema de justiça no domínio da violência, nas relações de intimidade e violação. Todavia e apesar da concordância absoluta com as recomendações explanadas, a verdade é que os órgãos policiais e judiciais, não possuem meios suficientes, nomeadamente humanos, para que muitas das melhorias que deviam ser implementadas tenham lugar.
Por outro lado, não se trata só de um problema das entidades competentes e das mudanças que precisam de ter lugar nas mesmas, este é também um problema e um trabalho cultural e social que terá somente reflexo no futuro, pois o mesmo exige mudanças drásticas, nomeadamente a nível da educação social que permita uma mudança de mentalidades, que não se faz somente com alterações institucionais.
Nesse sentido, temos assistido a mudanças como a que teve lugar na última sexta-feira, dia 19 de julho, quando foi aprovada legislação no parlamento que se repercutirá na obrigação dos magistrados frequentarem formação em direitos humanos e violência doméstica e recentemente vimos notícias sobre os polícias que se encontram a fazer formação em prevenção e combate à violência doméstica e tudo isso são ótimas medidas, mas neste momento é claramente insuficiente educar somente classes profissionais, todos temos que ser educados e sensibilizados nesta matéria, começando desde logo nas escolas.
Assim, e perante o flagelo da violência doméstica e das proporções dramáticas que o mesmo atingiu, só pode existir um caminho, a mudança, nomeadamente a nível legislativo e todos parecem concordar, nomeadamente, os diversos partidos políticos, apesar de ainda serem visíveis muitas divergências quanto ao entendimento de quais são as medidas necessárias. Tal foi percetível no parlamento na última sexta-feira, com muitos projetos de lei sobre esta matéria a não receberem aprovação, mas tem que ter lugar uma tomada de decisões com efeitos práticos, caso contrário estes números não pararão de aumentar.
1 Artigo 152.º (Código Penal)
Violência Doméstica |
1 – Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais: a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge; b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação; c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite; é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. 2 – No caso previsto no número anterior, se o agente: a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; ou b) Difundir através da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada, dados pessoais, designadamente imagem ou som, relativos à intimidade da vida privada de uma das vítimas sem o seu consentimento; é punido com pena de prisão de dois a cinco anos. 3 – Se dos factos previstos no n.º 1 resultar: a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos; b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos. 4 – Nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica. 5 – A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância. 6 – Quem for condenado por crime previsto neste artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício do poder paternal, da tutela ou da curatela por um período de um a dez anos. |