Regina Sardoeira
Fiz uma certa reflexão, talvez exagerada quanto ao resultado das suas implicações e ao termo comparativo, mas nem por isso destituída de nexo, quando assistia a um filme acerca das atrocidades perpetradas pelos nazis, no contexto da segunda guerra mundial. Percebi que os soldados e demais intervenientes no conflito (se excluirmos os grandes chefes e ideólogos) nem sempre e nem todos estariam de acordo com os actos que, efectivamente, praticavam. Esses homens operavam sob comando, obedeciam a ordens e, por mais dúvida ou repulsa que tivessem relativamente a elas, eram obrigados a cumprir. Não acredito que todos aqueles soldados e oficiais, tendo noção do verdadeiro alcance da sua missão, cumprissem as ordens com leveza e sentido absoluto do dever e da justiça. Porém, o ser humano, em geral, e os soldados na guerra, em particular, são, por excelência, individuos de hábitos e também influenciáveis, estando sujeitos a modificar as suas concepções iniciais, com a propaganda, o treino, a ideia do dever para com a pátria e outras circunstâncias afins. E, tarde ou cedo, começam a aderir sem culpas e mesmo a aceitar, como certos, os crimes que cometem e vêem ser cometidos.
Não é, de facto, este o tema da minha crónica: somente o tomei como paradigma do que pode ser o comportamento dos humanos. Revoltados, a princípio, fazendo isto ou aquilo com repulsa ou sem compreenderem muito bem o que lhes é exigido, acabam submetidos, reconciliados e até sentindo estar a cumprir,de facto, um dever.
Existe em Portugal uma norma ortográfica, designada como Acordo Ortográfico, quotidianamente contestada, pelos que querem a sua revogação, mas oficialmente assumida pelos sectores fundamentais da sociedade que são, a este nível, as diversas instituições de ensino.
A partir de uma certa altura,nas escolas, tornou-se obrigatório usar a nova grafia das palavras em todo e qualquer documento, ensinar aos alunos a nova escrita, e os manuais e outros instrumentos de trabalho passaram a ser escritos usando as novas regras ortográficas.
Como todos os outros, eu tive que aderir ao processo e fiz uma análise das alterações, a fim de poder pô- las em prática. Não dei a minha concordância, maioritariamente, às transformações que considerei e considero descaracterizadoras ou francamente erradas da língua portuguesa. Enquanto docente, tornei os alunos cientes da minha perspectiva, explicando-lhes a razão de ser da ortografia original de certos vocábulos e de que modo a alteração a desvirtuava. Disse-lhes, por exemplo, quanto me repugnava escrever e considerar correctamente escrita a palavra “cético” que, na minha óptica e na imagem mental que tenho do termo e do conceito, será sempre “céptico”; fiz a mesma análise à palavra ” espectador” que, sendo-lhe retirado o “c” passa a escrever-se “espetador”, termo que designa um objecto que espeta e não aquele que assiste a um espectáculo e que, desse modo grafado, também implica uma pronúncia diferente.
O que é certo é que, sozinha, não tive como sustentar as minhas convicções quanto à língua portuguesa, e precisei de adoptar o acordo nos documentos oficiais e aceitar a escrita dos alunos,tanto mais que as editoras se apressaram a elaborar manuais e outros suportes de ensino ao abrigo dessa suposta relação ortográfica com outros países lusófonos.
Creio que os alunos não foram devidamente instruídos acerca de todas as alterações incluídas no acordo, assim como a esmagadora maioria dos utentes da língua portuguesa. Muito menos lhes foram rigorosamente explicados os critérios directores responsáveis pelas modificações no modo habitual de escrever.
Gerou-se, deste modo, uma situação de absoluto caos linguístico. E, aos erros ortográficos já existentes na escrita do cidadão comum, juntaram-se novos e horripilantes desvios da norma que, ao certo, já poucos serão capazes de usar adequadamente.
Mas também não irei desenvolver este tema pormenorizadamente, uma vez que não é essa a minha motivação, de momento.
Falei das atrocidades perpetradas pelos nazis, aquando da segunda guerra mundial, e da progressiva mentalização e mesmo do reconhecimento, feito hábito, da necessidade de matar e oprimir em nome da defesa da pátria. Creio que,aos poucos, esses soldados acabaram convictos da justeza dos seus actos, tanto mais que a situação se tornou de tal modo irreversível que não havia como voltar atrás, dando o dito por não dito.
O acordo ortográfico da língua portuguesa corresponde a um assassinato da língua, a um tremendo holocausto das palavras e, queiramos ou não, impregnou toda a mentalidade de quem escreve e lê neste país. É impossível escapar-lhe, ele paira nas notas de rodapé dos noticiários, nas legendas dos filmes, nas páginas dos jornais, nas placas de sinalização, nos anúncios publicitários e as crianças que aprenderam a ler e a escrever nos últimos anos, já não reconhecerão a antiga grafia.
Querer revogar o acordo ortográfico, agora, é desfazer um malefício instalado como norma e adoptado por todos aqueles que apoiam, sem discutir, ordens absurdas – apenas porque lhes são impostas pelo poder. Não vejo como será possível voltar a considerar-se correcto escrever “céptico”, em !ugar de ” cético, ” e “espectador” em vez de “espetador”, regressando à forma anterior de grafar as palavras, creio que a arbitrariedade que permite escrever de uma forma ou de outra, consoante a pronúncia, já deu azo a múltiplos erros que nada têm a ver com as normas do acordo ortográfico, em si mesmo. E o vício linguístico está de tal modo difundido neste mundo em que as palavras assumem grande protagonismo, que eu diria serem cada vez mais raros, mesmo entre os doutos, os que escrevem correctamente, de facto.
Dir-me-ão que este holocausto linguístico em nada se compara aos múltiplos holocaustos das guerras perenes e que usar o nazismo como meio de comparação é um exagero. Sê-lo-á, de facto, se nos ativermos às consequências sangrentas de um, por oposição ao outro, este acordo ortográfico que não produziu mortes ou insidias; o que importa,contudo, reter é, simplesmente, a atitude humana de detestar e repudiar o horror e depois, fruto da obrigação, do hábito, da cobardia, já não destrinçar o bem do mal e muito menos reverter os danos. Aparentemente, o nazismo foi levado a cabo por hostes de criminosos: eu creio que uma grande parte deles acreditava estar a cumprir o seu dever e jamais veio a arrepender-se ou a sentir vergonha dos actos praticados. Também creio que a guerra, a segregação, o ódio fazem parte das atribuições do género humano e que nunca irá cessar o estado de guerra entre os homens: não existe nenhum meio de revogar o mal já levado a cabo, e a sua própria constatação não tende a melhorar o futuro.
O acordo ortográfico da língua portuguesa instalou-se,os danos estão aí à vista de quem ainda consegue ver: mas, do mesmo modo que não creio que os criminosos de guerra possam reparar ou sequer perceber o mal que fizeram, também os acordos, ortográficos ou não, estando acefalamente implantados e logo tidos como normais, perderão, com o passar do tempo qualquer possibilidade de revogação.