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Cultura, Literatura e Filosofia

ECOS LITERÁRIOS DE UM TEMPO NO ALENTEJO

Regina Sardoeira
No ambiente sereno, pacífico e muito belo, em que assisti a nasceres e pores do sol transcendentes, vislumbrei o cenário interior que me acometeu há vários anos quando conheci, realmente, o Alentejo e ali usufruí das metamorfoses da paisagem nas quatro estações do ano. Observei, pela primeira vez na vida,  um bando de andorinhas a voar muito baixinho, rente às cabeças,  rasando a água da piscina, para um ligeiríssimo banho antes da recolha no pinhal adjacente, tive outra vez  a percepção de que o Alentejo, mais do que um lugar como outro qualquer,  é um estado de alma,  uma disposição da mente, uma quimera. E então,  entre a praia, a piscina,  e durante a praia e durante a piscina,  detive – me a ler.
O primeiro título, que levava comigo, era “O tatuador de Auschwitz “, de Heather Morris  e por ele soube que o mundo dos homens é mau. É redundante falar desta história  (real) porque, em Auschwitz, um tatuador servia para inscrever na carne dos prisioneiros o número que ,  na morte e na vida, seria parte integrante deles, daí para a frente. Uma ignominiosa inscrição.
Prossegui com Simone de Beauvoir, “A Convidada’. Este, fui buscá – lo à estante da biblioteca do Monte; lê-lo, permitiu-me entrar no mundo boémio e artístico dos anos 30 do século XX, que foi também o ambiente da autora,  fez–me deambular por Paris, frequentar bares e cafés, assistir a longas conversas pela noite dentro, com muita bebida à mistura. Senti que, a continuar daquele modo, no périplo sempre igual, noite após noite,  das personagens,  também elas presas de alguma inquietação, o tédio acabaria entorpecendo a minha leitura. A certa altura,  porém, o rumo dos acontecimentos precipitou-se. E, de novo, fui atingida pela crueldade humana, ali presente numa espécie de jogo pérfido entre o amor e o ódio, em relações humanas onde os jogos de poder,  a sedução,  a posse, o ciúme, a vingança eram as marcas de uma aventura de suposta liberdade numa relação a três. Inviável.
A seguir saí de uma Paris dos finais dos anos 30 e precipitei-me nas atribulações,  em primeira pessoa , de um homem, que acorda, no hospital, com uma ferida enorme em plena testa e descobre a tragédia de ter perdido toda a família.  A partir daí,  busca reencontrar-se. Acaba envolvido num vórtice de enredos, para os quais é puxado por circunstâncias e pessoas que lhe caem na vida sem que as tenha procurado. E percebi, de novo, a crueldade, como marca e sinal da humanidade,  numa África do Sul moderna, mas inquietante. Foi “O despertar do adormecido ” , de Alistair Morgan, também ele parte integrante da mesma biblioteca.
João Tordo veio, por fim. Trouxe -me,  com “O ano sabático”, uma história de desencontro do eu consigo mesmo e uma espiral de desconforto profundo e de tragédia. Levou-me para Montreal,  trouxe-me para Lisboa e de novo me lançou  para Montreal. E eu concluí, mais uma vez, que o homem é um ser profundamente vazio e que,  ao descobrir- se, enquanto tal, inicia uma demanda pungente pelo sentido de si.
Li estes quatro livros e, no final, soube que a vida humana,  na realidade e na ficção, ou na ficção que reproduz a realidade, só  ganha sabor quando nela se introduz uma nota de tragédia. Um livro que narre uma história linear,  sem sobressaltos, quedas bruscas em abismos íntimos e posterior necessidade de redenção,  um livro onde todas as personagens sejam  simpáticas e generosas, sem que o vilão surja para criar conflitos e ruptura,  raramente será boa literatura. De igual modo,  uma existência humana vivida em permanente harmonia, onde tudo corre de feição e a felicidade plena irradia sem nenhuma mácula,  me parece nada mais que um mito.
Pude reflectir sobre este tema e evoquei a Origem da Tragédia de Nietzsche , os dois princípios que subjazem à existência,  o apolíneo e o dionisíaco, a serenidade inquebrantável do deus Apolo em permanente conflito criador com a embriaguez de Diónisos, e a sua marca imprescindível na tragédia ática.
Na apresentação do apolíneo encontramos a racionalidade e a ilusão num jogo perigoso orientado para os valores da Verdade, do Belo e do Justo. Por seu lado, o dionisíaco não é simplesmente uma oposição posterior a essas tendências civilizacionais. Pelo contrário, o dionisíaco é o outro impulso fundamental que rege o devir em que sempre está em jogo o limite dos indivíduos. O dionisíaco é o instinto de força e de luta, de desequilíbrio. O desequilíbrio resulta das próprias regras do jogo em que os indivíduos estão sempre envolvidos. A vida implica um confronto entre limites individuais. Este confronto é primevo, não está regulado por qualquer vontade boa ou justa, racional ou misericordiosa.
 No homem dionisíaco está viva a consciência do apolíneo, como convencional, como uma ilusão da perspectiva do indivíduo. Para o homem dionisíaco, as criações apolíneas não passam de acontecimentos de superfície.
 O artista apolíneo almeja a bela aparência, a boa ilusão que se encobre de o ser. Representa figuras bem delimitadas na sua individualidade, puras na sua beleza, caracterizadas pelo equilíbrio e pela harmonia. O artista apolíneo representa todos os valores tradicionalmente reconhecidos aos gregos. O criador dionisíaco exacerba a dissolução do indivíduo, a desmesura, o exagero.
São dois impulsos opostos, contraditórios. Contudo, são complementares da criação estética e universal. O dionisíaco deve poder manifestar-se apolineamente. A tragédia, bem como um certo tipo de música, são, para Nietzsche, a possibilidade realizada de apresentar e desenvolver a representação e exibição, que são apolíneas, do dionisíaco. O mito trágico deveria, assim, ser compreendido como uma espécie de representação simbólica do irrepresentável.
Evoquei estas e outras explanações nietzschianas acerca da estética trágica da existência, cujo poder vive nas antíteses, cuja harmonia decorre da superação apolínea do tumulto dionisíaco e se exprime, com autenticidade, no espírito da música e, pela via destes quatro livros,  tão diferentes no estilo, tão afastados quanto aos sítios em que decorrem as tramas, e mesmo díspares na linguagem,  por serem díspares os seus autores, percebi, de novo, que a existência é trágica. Vi, com clareza, que a tranquilidade do espaço e do tempo que me foi dada ali, entre o pinhal e o mar, por estradas rudes de terra vermelha,  com o sol queimando as fachadas brancas das casas, que me pareciam desertas, e depois, a frescura nocturna e o silêncio,  fizeram ricochete com o espírito daquelas leituras, quase todas escolhidas, ao acaso, numa biblioteca alheia. E vim embora, crendo que, por fim, encontraria, no regresso ao meu sítio,  a solução da antítese numa experiência de apaziguamento  comigo mesma.

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