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Cultura, Literatura e Filosofia

O PODER HUMANO DAS PALAVRAS

Regina Sardoeira
Muitas vezes penso que tudo o que há para dizer já foi dito. Penso que a humanidade, desde que descobriu o acto comunicativo, pela palavra, primeiro, na oralidade, mais tarde, na escrita, usou-a tanto e a tantos níveis que se foi repetindo ao longo dos tempos. E o exercício da comunicação,  pelo qual transmitimos ideias, sentimentos, impressões, banalizou – se, de um modo tal, que, quando lemos ou ouvimos seja o que for o eco dessas palavras ressoa até ao limite do tempo.
E contudo, continuo a fazer descobertas linguísticas.
Há alguns dias,  num teste de língua portuguesa, com quatro itens de escolha múltipla,  surgiu a palavra “gimnofobia” com as seguintes propostas de decifração :
Medo de envelhecer; medo da nudez; medo do desporto; medo do ginásio.
Partindo do princípio de que a primeira metade da palavra (gimno) está directamente ligada ao desporto, à ginástica, como por exemplo em gimnodesportivo, seríamos levados a concluir que gimnofobia será medo do desporto ou do ginásio que tem a mesma etimologia. No entanto, a resposta certa é ” medo da nudez”!
Não sendo uma resposta óbvia,  levou-me, de imediato, ao tempo dos gregos e ao culto do corpo que os impelia a exercitarem – se , no ginásio!  Mas faziam – no nus!
O adjectivo grego γυμνός (gimnos) significa “nu”, “não coberto” ou “ligeiramente vestido”.
Este adjectivo é da mesma raiz do verbo γυμνόω  que significa “desnudar” ou, na voz passiva, “estar nu”.
Para aperfeiçoar a beleza física, para desenvolver a força e contribuir para a saúde, os gregos praticavam exercício físico. Essa preocupação está presente nas estátuas que nos chegaram e que mostram como o cuidado com o corpo era algo a que dedicavam muita atenção, importante tanto para a preparação do guerreiro, como do cidadão em geral.Ora a prática de exercício físico fazia-se com pouca ou nenhuma roupa; daí γυμνάζω  “desnudar-se para a ginástica”, “fazer ginástica”, “exercitar”.A prática do exercício fazia-se no γυμνάσιον, o ginásio.
É esta, pois,a origem das palavras portuguesas: ginásio, ginástica, ginasta, etc.
Embora soubesse que os gregos praticavam ginástica, que o faziam no ginásio e se desnudavam para tal,  nunca tinha, de facto, reflectido sobre o verdadeiro significado do termo “gimno”. Percebê – lo, através de um teste banal de língua portuguesa, e retornar ao grego e ao significado das palavras, quantas vezes obscuro, foi para mim, um episódio interessante.
Gosto, de facto, das palavras e tento usá – las,  o mais possível,  de modo correcto, apropriado e, sempre que possível, estético. Percebo que o dom da palavra e da língua, que é considerado também um instinto, e logo fundador da nossa humanidade, faz de nós seres altamente especializados, pois somos capazes de emitir frases, textos, discursos de um modo automático, sem que sejamos capazes de perceber se houve pensamento anterior ao discurso ou se o discurso se antecipou ao pensamento ou se ambos ocorreram em simultâneo.
Nessa medida e sendo, nós,  os humanos,  detentores deste importante mecanismo comunicador, custa -me, amiúde,  perceber que usamos mal a linguagem, não só porque, de facto, não treinamos o suficiente e expressamo – nos mal,  mas também porque banalizamos as palavras, minimizamos o seu poder, descaracterizamos a comunicação.
Por outro lado, vejo que as palavras são entidades, não se resumem a sinais colhidos ao acaso, há em cada uma delas uma multiplicidade de histórias e uma origem que apenas a investigação profunda revelará. A língua, que é a marca principal do ser humano, está aí,  na nossa mente, no nosso ADN, é tão importante quanto os órgãos do nosso corpo, na medida em que nos constitui intrinsecamente. E no entanto, desbaratamo – la inúmeras vezes em discursos vazios ou tolos, em sofismas e mentiras, em iníquas manobras que visam iludir e perverter.
É então que nasce aquela angústia de que fala Roland Barthes, contradizendo o instinto humano da língua, “a afasia natural do escritor quando enfrenta a página em branco”. Hoje acometeu-me.
Mas a afasia vence-se sempre traçando, a negro, os signos construtores :e hoje foi assim.

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