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Cultura, Literatura e Filosofia

HOMEM: O “SERIAL KILLER” , (ÀS VEZES) CONTROLADO

Regina Sardoeira
Observo os seres à minha volta, porque sou propensa à análise e levo-a a cabo, sistematicamente. As pessoas interessam – me, pois são da minha espécie, com elas partilho as características essenciais; e, perceber como são, o que pensam, do que são capazes, é uma actividade que não dispenso.
Tenho seguido, nos últimos dias, uma série de ficção, intitulada “Mindhunter”, cuja premissa assenta na entrevista e observação de assassinos em série,  na década de 60, nos EUA, por uma equipa de cientistas do comportamento do FBI. Aos poucos, fui percebendo que os assassinos são reais, e não produto da imaginação de quem concebeu a trama. Charles Manson, Edmund Kemper, Jerry Brudos, Herbert Mullin, David Berkovitz, Richard Speck foram passando à  minha frente, contando histórias abomináveis  (e orgulhando – se disso), exibindo posturas excêntricas e demonstrando, invariavelmente, uma inteligência acima da média. Percebi haver uma base verídica  nas personagens, principalmente depois de ver, ficcionada, a entrevista com Charles Manson, e fui investigar. Encontrei – os todos, li as biografias, entendi o objectivo da equipa de ciência comportamental do FBI, na série,  procurando, nas entrevistas com os prisioneiros, entender a história pessoal e familiar desses homens, observar, através das suas próprias palavras e posturas, o motivo desencadeador para tantas atrocidades.
Todos eles têm histórias de vida marcadas por abandono, abuso, dificuldades económicas,  instabilidade familiar. Será que, por estas razões,  teriam que ser, inevitavelmente,  assassinos em série,  ou em sequência,  como chega a ser afirmado pelos agentes, será forçoso que uma criança carente, abusada, abandonada, vítima,  portanto, da família e do meio, desenvolva impulsos violentos e se torne um assassino?
O estudo do FBI, na série,  tem essa hipótese como base. Os assassinos, presos em alta segurança,  condenados a penas de prisão perpétua,  são questionados acerca dos seus crimes, e os investigadores tentam, nem sempre com inteiro sucesso, levá -los aos pormenores do seu crescimento, em família, às relações com pais, irmãos, amigos e à específica motivação para o crime.
São episódios de grande carga emotiva e muito reveladores do logro em que se tornou a espécie humana – a única designada como racional.
Ou será que não é,  de facto, um logro, mas a verdadeira essência do homem, aquela que se oculta, em todos nós,  no cérebro reptiliano,  a zona dos instintos primários e selvagens, camuflada pela civilização?
Eu creio nesta definição do humano há muito. Sei que todos possuímos instintos e que  a sociedade que fomos criando os vai recalcando desde o nascimento, alimentando, através do córtex cerebral,  em cada humano, uma consciência lúcida, respeitável, socializante, que designa como “ser humano”. E então,  muitos obedecem ao padrão,  nem sempre satisfeitos, mas por respeito às convenções,  outros descarrilam e, sem ninguém o prever, cometem um crime e depois outro, outros iniciam desde jovens uma vida marginal e nunca chegam a alinhar no conceito racional.
É então que pergunto: o que é, afinal, a racionalidade que reclamamos ser a nossa diferença específica, em relação aos restantes animais ( e reclamamo – lo pela voz de Aristóteles )?  Existe, em nós,  como predisposição natural e sobrepõe – se aos outros cérebros  (segundo a classificação de MacLean convivem, no homem,  o cérebro reptiliano ou instintivo, o cérebro emocional e o neocortex ou cérebro racional ), ou, sendo superior, se por superioridade entendermos o pensamento abstracto e a criatividade, aniquila os restantes?
De facto, uma tal aniquilação não se faz sentir. Continuamos a ser detentores de instintos, precisamos de toda a arquitectura do cérebro emocional que nos impele à satisfação das necessidades básicas,  em interacção com o cérebro reptiliano, e o neocortex alojado na parte frontal da caixa craniana não sobreviviria sem a base, onde estão os comandos do instinto e da emoção.
E então,  a própria racionalidade, a sua capacidade de realizar jogos lógicos e abstractos, de conceber todo um conjunto de artefactos civilizacionais, de construir a literatura, a arte, a música, é somente a cobertura de zonas primitivas e de sobrevivência sem as quais nenhum jogo racional seria possível.
Por essa razão,  a evolução da humanidade assenta em guerras e carnificinas, cuja narração enche as páginas da História em todos os tempos, a sociedade e os saltos civilizacionais cumprem – se pela via de múltiplos conflitos, a relação entre os homens trava – se no âmago de contínuas disputas e até,  no limite, o ser racional a que chamamos homem tende para o auto-extermínio, no irreversível atentado que vem perpetrando contra o seu próprio e único habitat.
Logo, a figura do criminoso compulsivo, psicopata ou sociopata, como é comum designá-lo, é o resultado da tumultuosa relação entre estes três núcleos cerebrais. Sendo racional, mas também emocional e reptiliano, e sendo – o, com intensidade, em todos os níveis , será capaz de transformar os instintos ferozes e emocionais em planos de rigorosa eficácia científica pelos quais mata, tortura, mutila…para,  a seguir se deleitar na memória dos seus actos e partir para novos projectos!
Sendo assim, vejamos : é isto o homem,  não adianta escamotear a questão, afirmarmos a nossa intrínseca bondade, sobrepormo – nos, enquanto seres magnânimos,  aos outros animais,  defendermos ideais elevados e doutrinas misericordiosas.  O homem é mau, por natureza, se quisermos fazer uma conotação moral, na linha da ética kantiana, que, precisamente, admite uma dimensão animal e logo instintiva, naquilo a que chama disposições humanas, só elevadas se a boa vontade  se  sobrepuser à animal idade.  E, sendo boa, a vontade, porque esclarecida,  ela admite afastar – se da norma e afasta – se efectivamente, uma e muitas vezes, a um ponto tal que, para manter – se na linha recta da moral, e logo da sociabilidade,  as leis que ela deve seguir necessitam ter o estatuto de imperativos.  E então,  note-se: a disposição superior do homem, conhecendo os impulsos bestiais que em si se alojam, deve, imperativa e categoricamente, sem condições portanto, impor, a si própria,  a bondade, o respeito,  a dignidade!
Quando vi o filme “Instinto”, de Jon Turteltaub, protagonizado por Anthony Hopkins e Cuba Gooding Junior, entendi as razões que levaram o antropólogo Ethan Powel, na trama, a matar os assassinos da sua família de gorilas. Nas profundezas da selva africana, o cientista do mundo civilizado aproxima – se daqueles animais, com o objectivo de estudá -los . E percebe, juntando – se a eles, respeitosamente, partilhando com eles os dias e as noites, uma profundíssima dimensão, não -humana, mas muito para lá do humano. E são eles que o aceitam, por fim, tornando-o, a ele,  o homem,  parte integrante do seu mundo.
Ora, quando o homem dá conta, que os seus irmãos gorilas estão a ser, impiedosa e gratuitamente caçados, abate os caçadores.  Claro que no mundo civilizado,  ninguém o entende e encerram – no numa prisão/manicómio.  Claro que só podia ser criminoso e louco um homem que mata os seus semelhantes para vingar gorilas! E é por isso que ele nem sequer fala: de que adianta? Ninguém iria compreender que aquele cientista super-civilizado, com mulher e filha, pudesse ter – se redescoberto,  a si e aos seus próximos, na longínqua selva africana! Porque o mundo civilizado não entende que, bem no fundo,  na base do nosso cérebro,  capaz de grandes feitos, há uma componente instintiva, forte, verdadeira,  sã, um núcleo poderoso, esmagado por imperativos éticos,  normas sociais, regulamentos, ou seja, o controlo, e que essa parte de nós irrompe quotidianamente, em todos e em cada um, em maior ou menor grau.
São necessárias as regras, não é verdade? Sem elas, a sociedade não funciona,  não é verdade?
Agora, olhem para o fundo do vosso ser e para o estado global do mundo e digam-me se este nosso cérebro racional, capaz de tão grandes feitos,  conseguiu imprimir à natureza, à sociedade,  ao próprio indivíduo singular qualquer espécie de harmonia,  qualquer laivo de superioridade.  Pensem depois na selva, nos gorilas ou nos elefantes, estudem – nos na sua especificidade e na relação com o habitat e diga-me quem é,  afinal, superior.

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