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BOLAMA – A ESQUECIDA PRIMEIRA CAPITAL DA GUINÉ

Joana Benzinho

Naquele dia de agosto, com a chuva a dificultar as deslocação na Guiné-Bissau, rumámos ao porto de Bissau para apanhar o barco de carreira para Bubaque, onde nos esperavam para nos levar num bote até Poilão, onde íamos observar o desovar da tartaruga verde, uma espécie em vias de extinção que elegeu esta pequena ilha do Arquipélago dos Bijagós para gerar novas vidas. Mochilas cheias de mantimentos e repelentes, lá nos instalámos num bocadinho de banco corrido que nos coube em sorte. Já o barco tinha os motores a trabalhar quando percebemos que o destino daquele velho cacilheiro não era Bubaque mas sim Bolama, antiga capital da Guiné Portuguesa. Tarde demais para sair… e assim como assim disseram-nos que o barco de Bubaque tinha partido antes da hora prevista com receio da tempestade que se anunciava.


Felizmente os tempos modernos contemplaram-nos com os telemóveis que fazem de tudo excepto dar saúde a quem dela precisa. Num primeiro contacto para tentar arranjar alojamento, sugerem-me procurar no barco alguém que viajava com uma carga de colchões, o dono de uma pensão em Bolama. Não encontrámos nem colchões nem dono, quem sabe embarcou, também ele por engano, no barco para Bubaque. Num segundo telefonema conseguimos o contacto de uma outra pensão que prontamente nos disse enviar alguém ao porto a receber-nos de braços abertos. E assim foi. Desembarcamos numa ilha inesperada, sem referências ou contactos, prontas para abraçar o desconhecido. E se valeu a pena!

A ilha parece ter sido abandonada à pressa e aparenta estar corroída pelo tempo. Se encontramos aqui e ali umas casinhas com aspeto habitado, maioria dos edifícios, dando ares de terem feito parte de um complexo habitacional e administrativo colonial encontram-se aqui e ali apenas por metade. São ferros retorcidos, traves de madeira tombadas, tijolo descarnado de paredes de pé alto outrora rebocadas. Logo na chegada à ilha encontramos a grande piscina outrora um ex libris de Bolama, com o fundo forrado pelas recentes águas da chuva misturadas com algum lixo, e que mesmo assim, ainda serve de ponto de diversão para as crianças.

Em frente, um monumento em razoável estado de conservação relembra as vitimas do acidente de aviação que vitimou em 1931 cinco italianos que efectuavam a travessia aérea transatlântica entre Roma e o Brasil.

Um pouco acima do porto fica o jardim municipal à volta do qual tudo funcionou outrora. Imponente, o antigo edifício dos Paços do Concelho, lembra a Casa Branca e deixa-nos atónitos com a presença de tal arquitetura neste bocado esquecido do mundo. As colunas, o telhado, as janelas, as paredes, cedem hoje ao peso do abandono e vão dando de si. A igreja da ilha, singela, lembra-nos um passado colonial ligado a Portugal e à presença católica que ainda hoje se faz notar. Bem perto, o antigo telégrafo da feitoria britânica, prova da presença britânica que o montou e que teve com os portugueses um conhecido litígio pela posse desta ilha, que acabou por ser dirimido pelo Presidente dos EUA, Ulisses de Grant que decidiu o pleito em benefício de Portugal. À volta do jardim, mais edificios obsoletos que outrora albergaram um bonito hotel, um banco e casas de famílias que se adivinham terem sido bem abastadas à época.

O mercado, recuperado já este século alberga as forças vivas de Bolama se deslocam diariamente para fazer quase que uma troca direta. Cada um leva o produz e regressa a casa com o que lhe falta. E em frente ao mercado, a tasca “Bar o Fogo” da Inês, uma guineense de ar balofo e sorriso rasgado, daqueles que envolvem imediatamente quem chega. Foi ali que refrescámos o corpo com umas cristais estupidamente geladas e comemos as magníficas refeições da estadia. Na primeira noite chegámos lá guiadas pela luz da nossa pequena lanterna e esperava-nos um peixinho assado com arroz com um tempero divinal. A ilha já dormia depois do frenesim habitual do cair do dia e ali estávamos nós com a Inês empenhada em nos servir bem e nos fazer sentir em casa. Na mesa ao lado, o comandante do barco e a tripulação que, como nós, ali ficaram no fim de semana, regressando todos na viagem de barco agendada para domingo. De uma mesa para a outra surgia a conversa, o debate da situação politica do país – o que dá sempre pano para mangas e muitos serões de análise sem repetições – e claro, sempre presente no discurso aquele enorme orgulho em serem guineenses. São momentos únicos estes em que, no meio do Atlântico a conversa flui com desconhecidos que têm mundos tão diferentes dos nossos e em quem encontramos tanta sabedoria, consciência social, politica ou ambiental e o sentido da beleza, da justiça, da oportunidade, da esperança num futuro melhor.

Esta ilha, que um dia foi capital da Guiné-Bissau e onde fomos parar por acaso, deixou-me naqueles três dias, uma das mais doces recordações que guardo da Guiné-Bissau.

Uma ilha que um dia foi majestosa e hoje nem das recordações se alimenta ou capitaliza em proveito próprio. Encontra-se adormecida mas não alheada do que a rodeia. Parece esperar pelo momento certo para renascer e mostrar ao mundo toda a beleza e imponência que ainda hoje conserva.

E nós regressámos certas de que mais dia menos dia voltaríamos àquela Bolama onde desembarcámos por engano.

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