Regina Sardoeira
Hoje, 15 de Outubro, comemora – se o 175° aniversário (eu comemoro!) do nascimento de Friedrich Wilhelm Nietzsche, assim nomeado por esta também ser a data do aniversário do monarca prussiano e imperador da Alemanha, Frederico Guilherme IV, na época do seu nascimento.
Comemoro esta data porque o pensamento exaltado do filósofo alemão alimentou o meu pensamento, enquanto estudante de Filosofia e depois, desde que me ofereceram o livro “Assim falava Zaratustra”, aquando do meu 19° aniversário.
Logo que tomei contacto com a escrita, simultaneamente poética, musical e filosófica deste livro, um autêntico cântico, do início ao fim, uma melopeia poderosa repleta de ressonâncias místicas, uma espécie de Bíblia, cujo profeta, Zaratustra ou Zoroastro, ali pontifica em irmanação absoluta com o autor, senti que precisava de conhecer Nietzsche. E este livro foi o primeiro da colecção que aos poucos fiz e me deu , por fim, a sua obra completa.
Não é possível caracterizar o génio deste homem trágico numa vivência feita de antíteses, em que retirou da doença, saúde, da fraqueza, força, da decadência, vontade de poder, um génio que elevou a língua alemã a patamares sublimes, pois que era filólogo, um génio que percebeu a tragédia grega, no espírito da música, pois que era músico, um génio filosófico empenhado em destruir as velhas construções dos filósofos para erigir um pensamento não -sistemático, um poeta de sensibilidade extraordinária já que nele falavam alto as emoções, um professor carismático, erguido à cátedra em idade juvenil, por ser triunfante o seu talento, um homem, demasiado humano, querendo amar os outros, mas fugindo deles para a sétima solidão, um errante, incapaz de permanecer no mesmo lugar por muito tempo e procurando os sítios apropriados à sua índole e aos seus nervos, um incompreendido, pois a sua obra rasou os ilustres do seu tempo, cuja mornidão não pôde aceitar tanta ousadia, e os seus textos, poemas, aforismos não atingiram, varrendo, quem deviam, um louco/lúcido, um doente/são, um ateu/crente.
Defini – lo é impossível e até hoje poucos terão conseguido penetrar o poder extremo das suas apóstrofes, acompanhar o ritmo alucinante do seu pensamento, interpretar o sentido e o alcance das suas palavras e dos seus actos.
Nietzsche morreu em 1900, depois de viver numa espécie de limbo, durante 11 anos. Ninguém sabe, ao certo, as causas verdadeiras do seu colapso mental e o que os biógrafos avançam como resposta são suposições e conjecturas. O que é certo é que um dia, 3 de Janeiro de 1889, em Turim, na Piazza Carlo Alberto, vendo um cocheiro a chicotear cruelmente um cavalo, emocionou – se, atravessou a rua, abraçou o cavalo maltratado, perante o olhar atónito do cocheiro e dos transeuntes, e esse episódio neurótico marcou o início dos anos de demência.
Depois do seu colapso nervoso, a Alemanha foi desenvolvendo o ideal germanista, a convicção de que o gigante loiro, de olhos azuis era o símbolo perfeito da raça e que tudo o que não fosse ariano deveria ser exterminado. Nietzsche não pôde assistir a estes atentados racistas, com os quais nada na sua obra é compatível, mas depois da sua morte encontrou, por fim, os leitores, os alvos da sua escrita impetuosa e a fama.
Mas como afirmei antes, se hoje, 175 anos depois do seu nascimento, ainda não existe consenso acerca dos seus pensamentos, muito menos tal compreensão e consenso existiriam naquela época conturbada e terrível.
As convicções racistas da Alemanha do início do seculo XX, levadas ao rubro depois da primeira guerra mundial, e protagonizadas pelo cabo Adolf Hitler, feito propagandista do anti-semitismo, encontraram, justamente, na irmã de Nietzsche, Elizabeth Forster-Nietzsche uma fervorosa adepta. Racista, pró -alemã, anti-semita, ela acompanhou o marido, Bernhard Förster , ao Paraguai com o objectivo de formar uma colónia de raça pura.
Quando Hitler ascendeu ao poder, tornou-se sua amiga e admiradora e, depois de ter desvirtuado as obras do irmão, para que o super-homem e a vontade de poder, o apelo à guerra e outros conceitos nietzschianos se adaptassem ao nazismo, ofereceu a Hitler a bengala do irmão e algumas dessas obras deturpadas.
O nazismo, enquanto política, necessitava de uma base filosófica e ideológica; e foi Elizabeth Nietzsche que lha ofereceu, em nome do irmão!
Esta pretensa ligação de Nietszche ao nazismo ensombrou muitas interpretações da sua obra e foi necessário reescrever as que haviam sido deturpadas pela irmã, ela própria escritora, e assim restaurar a integridade do seu pensamento.
Nietzsche sabia das inclinações políticas da sua irmã, as quais sempre combateu; e há trechos dos seus livros em que vitupera os alemães do seu tempo, apodando-os de decadentes.
O super -homem nietzschiano não tem qualquer simbologia racista, sendo, acima de tudo, a ideia de superação da fragilidade e da decadência do humano e a reconstrução do homem com novos valores. Nao tem qualquer cunho racista, mas sim filosófico e ético. E a vontade de poder nada tem a ver com o domínio do tirano sobre os outros homens, mas o domínio de si mesmo, o esforço da vontade para afastar -se da mediocridade intelectual.
O apelo à guerra centra-se na mesma concepção de luta contra os instintos básicos e primários pela criação de uma humanidade digna.
“O homem é uma corda estendida entre o animal e o Super-homem: uma corda sobre um abismo; perigosa travessia, perigoso caminhar; perigoso olhar para trás, perigoso tremer e parar. O que é de grande valor no homem é ele ser uma ponte e não um fim: o que se pode amar no homem é ele ser uma passagem e um ocaso.” (Assim falava Zaratustra )
O Super-homem nietzschiano é a escala evolutiva de que o homem necessita para ultrapassar a sua medíocre condição. Mas não se trata de uma evolução de cunho darwiniano, cujo mote é a selecção natural e a escalada das espécies, mas sim uma conquista que o homem, chegado ao auge biológico da animalidade, deve realizar em si mesmo.
“O que é o macaco para o homem? Uma zombaria ou uma dolorosa vergonha. E tal deve ser o homem para o super-homem: uma zombaria ou uma dolorosa vergonha.”
“Percorrestes o caminho que vai do verme ao homem, e em vós ainda resta muito de verme. Outrora fostes macacos e, mesmo agora, ainda mais macaco do que qualquer macaco é o homem.(Assim falava Zaratustra )
Este foi apenas um apontamento acerca deste génio prodigioso, malogrado e decadente, mas também, como ele escreve no seu último livro ” Ecce Homo” , “o contrário de um decadente”.