Lígia Peralta
No dia 16 de outubro, Dia Mundial da Alimentação, a Direção-Geral da Saúde e o Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável lançaram o manual “Alimentação Saudável dos 0 aos 6 anos – Linhas de Orientação para Profissionais e Educadores”. Trata-se de um documento extenso, redigido por um grupo constituído por diversos profissionais desde a saúde até à educação, e dirigido a profissionais de saúde, de educação, a pais e educadores. O objetivo deste trabalho é fornecer aos cuidadores e profissionais de saúde ferramentas que garantam a otimização do crescimento, baseada numa oferta alimentar equilibrada e variada e na prática de exercício físico, adequados a cada escalão etário.
Nesta crónica, dividida em 2 partes, irei procurar resumir as mensagens mais importantes deste manual, dirigi-las essencialmente a pais e cuidadores, simplificando a linguagem médica. Assim, nesta 1ª parte debruçar-me-ei sobre as questões inerentes ao crescimento e desenvolvimento da criança, ao aleitamento materno e, na ausência deste, ao aleitamento artificial.
- CRESCIMENTO E DESENVOLVIMENTO
É durante o primeiro ano de vida, sobretudo nos primeiros 6 meses, que ocorre o crescimento e desenvolvimento mais rápido na vida do ser humano: por um lado, o peso ao nascimento duplica cerca dos 4 meses e triplica cerca dos 12 meses, e por outro a criança passa, progressivamente, de um “estilo de vida” quase inativo para um estilo de vida com elevada atividade motora, sensorial e social.
Ao longo dos primeiros 6 meses de vida o leite materno (muito rico em gordura) é suficiente para acompanhar este crescimento e desenvolvimento cerebral. Contudo, por volta dos 5-6 meses, embora o crescimento se torne um pouco mais lento, a criança aumenta a sua atividade motora, o que obriga a uma mudança nas suas necessidades alimentares, nomeadamente maior necessidade de energia, gordura e hidratos de carbono (essenciais ao trabalho muscular). É também nesta altura que a capacidade do estômago aumenta (aceitando maior quantidade de alimentos), e que as enzimas digestivas amadurecem, permitindo a aceitação e digestão de outros alimentos que não o leite.
No 2º e 3º anos de vida, o crescimento e desenvolvimento dependem e são modulados pelos ambientes social, cultural e económico da família e da comunidade em que a criança está inserida. A velocidade de crescimento diminui drasticamente (ou seja a criança já não vai triplicar o seu peso em cada ano), permanecendo baixa e estável até à adolescência (quando ocorre o “pulo de crescimento”). Esta diminuição da velocidade de crescimento explica a chamada “anorexia fisiológica do 2º ano de vida” que se caracteriza por uma diminuição do apetite e desinteresse pela comida, ambos resultantes do facto de as necessidades nutricionais da criança também diminuirem. Este comportamento é muitas vezes motivo de preocupação dos pais e de consulta de pediatria quando, na verdade, é uma situação não só expectável como previsível e explicável. Deve ser respeitado o apetite da criança: pais e cuidadores devem oferecer variedade e qualidade, a criança deve gerir a quantidade.
A “idade pré-escolar” (período dos 3-6 anos) é marcada pelo início do contacto com outro tipo de formadores/cuidadores, para além dos pais, uma vez que é nesta idade que muitas crianças iniciam a frequência dos jardins-de-infância. A velocidade de crescimento é constante, mas lenta. A criança saudável é caracteristicamente longilínea (alta e magra), com pouca gordura corporal. É durante este período que ocorre o chamado “ressalto adipocitário”, ou seja, um aumento sustentado do Índice de Massa Corporal a partir dos 5-6 anos e até ao final do crescimento. Este fenómeno reflete o aumento de massa gorda no sexo feminino e o aumento de massa muscular no sexo masculino. Quando este ressalto ocorre mais precocemente (por um aumento de peso desproporcional e inadequado ao aumento da estatura), parece haver um risco acrescido de sobrepeso/obesidade, excesso de massa gorda, diabetes e doença cardiovascular na vida adulta, bem como uma maturação mais precoce mas não desejável (avanço da idade óssea, surgimento mais precoce dos sinais pubertários com comprometimento da estatura final).
- DEFINIÇÕES
Durante o 1º ano de vida (1-12 meses), a criança recebe a designação de “lactente” devido à importância que o leite, preferencialmente materno, adquire na sua alimentação. Este deverá ser o alimento exclusivo até cerca dos 6 meses, continuando a ocupar um lugar de destaque até aos 12 meses de idade, enquanto se vão introduzindo novos alimentos.
A introdução de outros alimentos, para além do leite, constitui o período de diversificação alimentar, muito importante para o treino do paladar, texturas e comportamentos.
Após o 1º ano de vida a criança é gradualmente inserida na dieta da família, adoptando os hábitos alimentares do agregado familiar.
- ALIMENTAÇÃO LÁCTEA EXCLUSIVA
É consensual, por parte das várias comissões de nutrição e pela OMS, que o lactente pode ser exclusivamente amamentado durante os primeiros 6 meses de idade, devendo a amamentação manter-se a par da diversificação alimentar e durante a introdução na dieta familiar, ou seja, até aos 12-24 meses.
Durante os primeiros 6 meses de vida, caso o leite materno se torne insuficiente, a alimentação deve continuar a ser exclusivamente láctea, devendo utilizar-se, em complementaridade ou em alternativa, fórmulas infantis, cuja composição é concebida para se aproximar à do leite humano. O aleitamento materno, mesmo que parcial ou em período menor que o desejável, mantém um efeito benéfico quando comparado com a alimentação exclusiva com fórmula infantil.
Comparada com a fórmula infantil, a amamentação é mais segura, económica e mais conveniente: está disponível em qualquer lugar, sem risco de contaminação na preparação e a temperatura é sempre adequada. Outra vantagem do leite materno é a sua composição ideal para o lactente humano.
O leite materno difere na sua composição e vai variando ao longo da mamada, no próprio dia e durante os meses, adaptando-se constantemente às necessidades do recém-nascido/lactente. A sua qualidade é sempre excelente e adequada, sendo a evolução satisfatória do peso do bebé o melhor indicador.
Os componentes nutritivos do leite humano (macronutrientes) são de elevado valor biológico, nomeadamente lípidos e proteínas complexas de elevada qualidade (ácidos gordos e aminoácidos essenciais), assim como a lactose, o principal hidrato de carbono, facilitador da digestão. Estes macronutrientes fornecem a energia adequada e desempenham um papel relevante para um crescimento saudável e harmonioso.
Os nutrientes funcionais não têm propriamente o papel de nutrir, mas desempenham funções bioativas, como a imunomodulação, a atividade antimicrobiana, a função digestiva, o desenvolvimento intestinal (fatores de crescimento) e de órgãos e sistemas, com particular revelo para o neurodesenvolvimento. O leite de vaca, a partir do qual é fabricada a grande maioria das fórmulas infantis correntes, não contém (ou inclui em quantidades ínfimas) muitos destes nutrientes funcionais. A amamentação é um fator independente para a proteção contra infeções, nomeadamente infeções respiratórias inferiores e superiores nos primeiros dois anos de idade (otite média aguda e rinite alérgica), e diarreia aguda nos primeiros cinco anos de idade. A longo prazo, o leite materno protege contra a diabetes mellitus do tipo 2, o excesso de peso/ obesidade, a leucemia, a elevação das pressões sistólica e diastólica e melhoria do desempenho cognitivo e motor.
a)Primeiras semanas de vida
Muitas vezes a futura mãe idealiza um recém-nascido que se comporta como se já tivesse uma ou duas semanas de idade e não horas ou poucos dias. É importante saber que, após o nascimento, a capacidade do estômago é reduzida (20-30 ml – semelhante a uma noz), pelo que o recém-nascido não tem necessidade de mamar tanto quanto irá fazer quando tiver uma semana de idade, já com o dobro da capacidade gástrica (45-60 ml – semelhante a um pêssego).
O colostro, o leite produzido imediatamente após o parto, é segregado em pouca quantidade, muitas vezes transparente ou translúcido (devido à pouca quantidade em gordura). Este primeiro leite é extremamente importante não só pelo seu teor em substâncias tróficas e protetoras como pelas suas qualidades nutritivas e sobretudo para a proteção imunológica, pois é rico em proteínas, vitaminas (A, E e K), fatores de crescimento, imunoglobulinas (sobretudo imunoglobulina A secretora), oligossacáridos, lactoferrina e células do sistema imunitário.
b)Mitos
A cólica do lactente, um dos fatores mais comprometedores do sucesso da amamentação nos primeiros meses de vida, surge geralmente após as duas semanas de vida. Embora seja da crença comum, na verdade, não existe atualmente evidência robusta que comprove que a evicção na dieta materna de determinados alimentos melhore a cólica do lactente.
Sabe-se também que é errado restringir ou evitar a ingestão de alimentos durante a amamentação, por estes poderem modificar ou influir negativamente no sabor do leite. Pretende-se precisamente o contrário, que o lactente vá tomando contacto com o reportório de sabores da sua mãe e da comunidade em que está inserido. Aliás, enquanto feto, ao deglutir o líquido amniótico já terá obtido experiência sensorial, olfativa e gustativa dos sabores e odores da dieta materna.
A alimentação materna tem pouca ou nenhuma influência na concentração de grande parte dos nutrientes no leite. Importa, pois, que a mãe a amamentar mantenha um adequado estado nutricional, um estilo de vida ativo e uma dieta variada e equilibrada, ajustada às suas necessidades, não devendo reforçar a ingestão de alguns alimentos, nomeadamente leite e derivados, como objetivo de melhorar a qualidade do leite, estando inclusivamente registadas algumas desvantagens em casos particulares.
c)Dinâmica da amamentação
Nos primeiros dias de vida o recém-nascido mama durante pouco tempo, e o que se pretende é que aprenda a técnica da mamada e desenvolva uma boa “pega”. Sensivelmente a partir da primeira semana de vida, a sucção torna-se mais eficaz e forte, aumentando o risco de fissura dos mamilos. A dor associada às gretas mamilares é frequentemente um fator desmotivador da amamentação. Importa ter a noção de que, o recém-nascido precisa de 5 a 8 minutos para mamar cerca de 90% do que precisa nessa mamada. Assim, não há vantagem em prolongar uma sucção vigorosa para além dos 10 a 15 minutos, em cada mama. É vantajoso esvaziar cada mama, pois o leite que é sugado em primeiro lugar é mais rico em água e lactose e à medida que a mamada prossegue, vai tendo mais gordura. O bebé deve concluir a refeição na outra mama e, caso esta não seja completamente esvaziada, é por onde deve iniciar a refeição seguinte, para beneficiar da totalidade dos nutrientes. Sempre que não haja um esvaziamento considerável da segunda mama e esta se mantenha túrgida e tensa, o leite deve ser retirado pelo menos na quantidade que permita reduzir o desconforto, de forma a evitar inflamação e infeção da glândula mamária (mastite).
Não se deve impor um horário rígido entre refeições, devendo o bebé ser alimentado em regime livre (livre demanda), isto é, quando tem fome. Sendo o peso um bom indicador da adequação da oferta alimentar, importa saber que todo o recém-nascido perde peso nos primeiros dias de vida, por eliminação de água. Enquanto não recupera o peso de nascimento, pode empiricamente adotar-se a regra de não prolongar mais do que 3 horas o intervalo entre mamadas.
Embora a OMS recomende a amamentação exclusiva até aos 6 meses de idade, frequentemente interpõe-se o término da licença de parto. Sendo este o caso, a mãe pode conciliar a amamentação com a sua ausência no trabalho, amamentando antes de sair e retomando após regressar.
d)Extracção e conservação do leite materno
O leite retirado durante o 1º mês, por não ser um leite maduro, não deve ser armazenado. Depois do 1º mês, o leite pode ser conservado em frigorífico ou em congelador.
Para refrigeração e congelação, deve ser acondicionado em recipientes de plástico duro (polipropileno ou policarbonato) ou de vidro, preenchidos até um máximo de 3⁄4 do volume. O leite pode manter-se congelado a -20ºC até seis meses. Não havendo garantia de congelação a -20ºC, o tempo de conservação não deve exceder 2 – 3 semanas.
A descongelação deve ocorrer no frigorífico, a uma temperatura igual ou inferior a 4ºC, devendo ser administrado no prazo de 24 horas. Para a descongelação não deve ser utilizado “banho-maria” nem micro-ondas. Se o leite descongelado for deixado à temperatura ambiente, deve ser utilizado dentro de uma hora após a descongelação.
Em situações de conservação do leite é fundamental respeitar as regras de higiene, de forma a evitar a contaminação dos materiais e doença do recém-nascido/lactente.
e)Contraindicações à amamentação
As contraindicações definitivas do aleitamento materno são raras. Podem ser por razões maternas ou relacionadas com a própria criança. Existem outras situações em que a amamentação está apenas temporariamente contraindicada até que as mesmas estejam ultrapassadas ou quando existe a necessidade temporária de certo tipo de medicação. Durante o período de suspensão transitória da amamentação deve utilizar-se uma fórmula infantil, e a mãe deve extrair o leite para estimular a sua produção. Enquanto não tem aconselhamento médico, pode obter informação detalhada sobre fármacos contraindicados na amamentação no site e-lactancia.org.
Contraindicações definitivas à amamentação
Causa materna – Doenças graves ou crónicas debilitantes; infeção pelo vírus da imunodeficiência humana (VIH); necessidade absoluta de medicação que contraindique a amamentação (antineoplásicos, alguns anticonvulsivantes, alcaloides da ergotamina e radiofármacos)
Criança – Doenças metabólicas congénitas raras, como a fenilcetonúria e a galactosémia.
Contraindicações temporárias à amamentação
Varicela, herpes com lesões mamárias e tuberculose ou brucelose não tratadas. Medicação que contraindique o aleitamento materno.
f)Mãe que não consegue amamentar não é menos mãe
A decisão de amamentar compete à mulher e, caso não o deseje não há lugar à culpabilização, mas sim ao auxílio na procura da melhor alternativa. As decisões individuais, desde que apoiadas por informação esclarecida, devem ser respeitadas.
Merece uma referência particular a mãe que tentou e não conseguiu. O insucesso pode resultar de falta de informação, de pouco apoio familiar, de instabilidade emocional, de mamilos invertidos (ultrapassável com mamilos artificiais), de gretas do mamilo muito dolorosas, do ingurgitamento mamário excessivo, de mastite, ou de simplesmente hipogaláctia (diminuição de secreção de leite) inesperada.
- FÓRMULAS INFANTIS
Durante o primeiro ano de idade pode haver necessidade de complementar ou substituir o leite materno e, nestes casos, está indicada uma fórmula infantil. Um recém-nascido / lactente saudável deve ser alimentado, na ausência de leite materno, com uma fórmula infantil standard, dado que todas as outras apresentam maior ou menor manipulação dos seus constituintes, afastando-as do padrão ideal que é o leite materno. Assim, fórmulas especiais (parcialmente hidrolisadas, de soja, antirrefluxo, sem lactose, etc.) devem ser utilizadas apenas com base em prescrição médica. Não há suporte científico nem legislativo para a utilização de fórmulas de continuação/crescimento (fórmulas 3,4 e 5), acrescido do facto de estas apresentarem um teor proteico consideravelmente desajustado, por excesso, às necessidades do crescimento do 2º e 3º anos de vida.
A grande maioria das fórmulas para lactente são produzidas a partir do leite de vaca e a indústria alimentar infantil, apoiada pela investigação, tem tentado aproximar a sua composição à do leite humano.
Tipo de fórmula infantil: standard |
Fórmula infantil 1 (para lactente) |
dos 0 aos 12 meses (podendo manter-se até aos 24-36) |
Fórmula infantil 2 (de transição) |
dos 6 aos 12 meses (podendo manter-se até aos 24-36) |
Fórmulas especiais (anti-refluxo (AR), com proteína parcialmente hidrolisada (HA) ou extensamente hidrolisada e fórmulas para prematuros) |
de acordo com recomendação médica e suportadas numa clínica robusta |
Fórmulas “funcionais” (Anti-obstipante (AO), Anti-diarreia (AD); Anti-cólica (AC) etc ) |
em casos particulares e pelo mínimo de tempo possível |
Como previamente referido, a utilização de uma fórmula infantil pressupõe a impossibilidade, total ou parcial, de o lactente ser amamentado. Caso a alimentação seja exclusivamente láctea com fórmula infantil, devem ser respeitadas algumas regras (recém-nascidos de termo, com mais de 7 dias de vida):
- a)Devem ser oferecidas 6-8 refeições /dia (24h), dependendo da idade.
- b)O volume diário total deve ser de 150 ml/kg/dia e o volume máximo no biberão de 180 – 210 ml.
- c)O intervalo entre as refeições deve ser em média de 3 a 3,5 horas (idealmente não mais de 4 horas).
- d)A água a utilizar para a preparação da fórmula infantil deverá ter pH neutro (6,7 a 7,7) e a temperatura no momento da reconstituição deve ser de cerca de 37ºC.
- e)O leite deve ser preparado para cada mamada. Se for preparado para a totalidade do volume diário, deverá permanecer em frigorífico e, no momento da mamada, aquecido em “banho-maria” ou em aquecedor próprio para biberões, apenas no volume a oferecer na mamada. Caso haja sobra, esta deve ser desperdiçada.
- f)Os biberões devem ser sempre bem lavados com sabão (não detergente) e escovilhão, e posteriormente esterilizados, até aos 4 meses de idade.
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Texto integral do manual “Alimentação Saudável dos 0 aos 6 anos – Linhas de Orientação para Profissionais e Educadores” disponível em https://nutrimento.pt/noticias/alimentacao-saudavel-dos-0-aos-6-anos-linhas-de-orientacao-para-profissionais-e-educadores/
Na próxima crónica, a 2ª parte dedicada à diversificação alimentar, alimentação no 2º e 3º anos de vida, alimentação dos 3 aos 6 anos, recomendações de atividade física e propostas práticas para a aquisição de hábitos alimentares saudáveis.