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Cultura, Literatura e Filosofia

SER OU NÃO SER PATRIOTA

Regina Sardoeira

Não sou patriota: eis o que, de mim, descobri, há algum tempo. Para poder sê-lo teria que confinar-me a uma realidade a que chamam pátria, amar esse território acima de qualquer outro, admitir defendê-lo, morrer por ele, no limite, elevar até aos cumes possíveis os seus símbolos.

Ora não me fascina, em absoluto, a bandeira nacional, o hino nacional parece-me uma canção despropositada, o presidente da República é um homem comum, sem poder para representar-me, de facto.

A História de Portugal é um relato contínuo de guerras, emboscadas, traições, ganâncias. Os reis e rainhas, um conjunto de privilegiados, com os seus servos e palácios, muitos deles fracos ou dementes, cobardes ou criminosos. Os Descobrimentos, essa glória do passado, que, na infância, nos foi ensinada como baluarte supremo do vigor português, não foram mais do que actos indignos de pirataria, saque e condenação à escravatura de povos que tinham o seu mundo e se viram dele espoliados.

A guerra colonial, para impedir a ascensão aos seus direitos dos povos oprimidos, foi criminosa, porquanto vitimou jovens de cá, obrigados a ir para muito longe defender a pátria que, afinal, deixavam para trás, e jovens de lá obrigados a lutar pela posse de uma pátria que não tinham e talvez não soubessem, verdadeiramente, o que era.
O 25 de Abril foi a abertura fácil de um portão ferrugento e apodrecido e a elevação à grandiosidade de pessoas comuns, naquela hora situadas no local propício. Foi a permissão tardia da entrada de um povo na sua maioridade, um povo cujos olhos estavam embaciados, cujo corpo só se movia na única direcção possível. Tal como uma criança que é impedida de crescer, porque a enjaulam num espaço demasiado pequeno, e depois não pode desenvolver-se porque passaram as fases propícias e o corpo torna-se rígido e não cresce, também os portugueses, com o ADN embutido em moldes demasiado apertados, não puderam crescer, em liberdade tanto quanto poderiam.

Por isso, que pátria é esta que devo amar, tornando-me patriota?

Sei bem que temos os escritores portugueses, os músicos portugueses, os artistas portugueses, os atletas portugueses e que, decerto, deveria ser patriota para os honrar, para ter orgulho neles, para me sentir cumprida, enquanto portuguesa.

Mas não. Posso admirá-los, a todos esses que, nascidos em Portugal, transcenderam as fronteiras (e notem bem: eles “transcenderam as fronteiras”), a todos esses que, sendo portugueses, mostraram valor e foram reconhecidos universalmente ( e notem bem: eles “foram reconhecidos universalmente), posso gostar deste território e usufruir dele, sem grande necessidade de ir mais longe. É a estas sensações que devo chamar patriotismo? Devo ufanar-me e regozijar-me porque um ou mil portugueses se destacaram, nesta ou naquela área, tal como se fossem ingleses, noruegueses ou alemães?

Tais sentimentos são absurdos. Se, para sermos grandes portugueses, for necessário ombrear ou superar um estrangeiro, o que diz essa circunstância da nossa portugalidade? Se, para sermos reconhecidos, enquanto portugueses, precisarmos de medalhas e títulos e homenagens dados por outros países, o que somos nós, afinal, enquanto portugueses, aqui nascidos, aqui educados?

Por isso, nunca quis ser patriota e reconheço que, de facto, não cheguei a sê-lo.

Creio no valor de quem o tem, revelado ao mundo ou oculto para uma minoria, e creio nele, independentemente da nacionalidade. Se for português, talvez a minha identidade o reconheça como afim (ou talvez não) ; se for estrangeiro, acabarei interpretando outros modos de estar e acabarei acrescentada.

O patriotismo cego é uma estupidez, encerra-nos num pequeno mundo, estreito e confinado, torna-nos estranhos ou embasbacados perante tudo o que vem de fora e de longe, suprime a nossa mais alta vocação humana que é universal.

Eu acredito na universalidade subjectiva quando ela se manifesta, eu creio no poder do indivíduo quando parte à descoberta de si e se encontra, algures, num mundo que pode ser qualquer um, eu sinto que a humanidade só poderá resolver-se quando desaparecerem as fronteiras e os muros entre os povos e deixar de haver patriotismo.
Claro que Portugal é a minha casa e os portugueses são os meus próximos directos. Só que estes factos são, meramente, circunstanciais. Não é por serem de Portugal que gosto de certas cidades, vilas ou aldeias; não é por serem portuguesas que gosto das pessoas que me rodeiam. Nasci aqui e aqui vivo mas sinto afinidades com todos os seres do mundo e poderia viver noutro sítio qualquer. Não vejo superioridade ou inferioridade nas qualidades que me tornaram portuguesa; creio que, de um modo ou de outro, partilhamos todos a essência do humano.

Fernando Pessoa terá escrito: “A minha pátria é a língua portuguesa.” e esta afirmação, por si mesma, destaca a única identidade que nos separa dos outros países. Falamos português e não chinês ou russo e, com palavras e pensamentos em português, construímos o nosso pensamento e a nossa cultura. Mas pensamento e cultura não são mais do que heranças do passado, memórias de outros tempos: era preciso escavar até ao princípio original, encontrar a raiz silenciosa que nos deu o ser – e então pensamentos, palavras, cultura perderiam todo o sentido.
Vejo bem o carácter utópico e um pouco avesso ao senso comum destas minhas reflexões ; pressinto que qualquer leitor terá muita dificuldade em perceber-me e dar o seu crédito a ideias tão extravagantes. E contudo elas têm o poder original de toda uma revolução que precisa de acontecer em cada indivíduo e propagar-se universalmente.
Se olharmos à nossa volta, com os olhos de dentro e não com os simulacros míopes da nossa visão estereotipada, aprenderemos a ver. Talvez haja, a princípio, um negrume absoluto, talvez queiramos procurar refúgio no mundo de antes, onde havia luz e cor. Mas essa luz e essa cor não passam de ilusões e tudo o que vemos e sabemos são, afinal, as sombras projectadas na parede da caverna de Platão.

Se decidirmos enfrentar o absoluto negrume da nossa viagem e habituarmos o corpo ao desbravamento de um caminho virgem, em breve seremos nós a luz; e nunca mais desejaremos voltar atrás e contemplar arco-íris traiçoeiros ou perseguir bolas de sabão multicolores.

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