Regina Sardoeira
A propósito das alterações climáticas, neste momento, em que uma activista fala em Lisboa, eu pergunto: o que pode, de facto, fazer-se para suster a mudança?
A mudança, seja no clima, seja no que for, não pode ser travada. É um sonho humano e uma ilusão – já que o sonho pode eventualmente tornar-se realidade e a ilusão permanecer – querer influenciar, humanamente, as inevitáveis transformações : do clima, das marés, do desgaste, da vida animal, de tudo quanto existe.
Tudo o que é vivo, muda; se não muda, está morto.
Vejo que, ao longo dos milénios, a principal ocupação do homem consistiu em alterar o ambiente, à sua volta, construindo abrigos, cultivando a terra, domesticando animais, explorando a terra e as águas, ocupando todos os territórios possíveis, inventando e fabricando ferramentas e máquinas, com as quais incrementou a transformação…até chegar ao “agora” .
Há séculos que a Terra sofre o impacto avassalador da acção humana. Há séculos que a humanidade se extasia com os seus próprios feitos, seja porque aprendeu a sulcar os mares, a fender a atmosfera, a deslizar velozmente por estradas e caminhos de ferro construídos, a erguer torres para habitar, castelos e muralhas para se defender dos outros homens, materiais e objectos de consumo cada vez mais eficazes…ou por outra realização qualquer. O homem admira-se a si mesmo, enaltece as suas obras, preserva-as, reconstrói – as. Inventa. Explora o universo, até onde consegue chegar, levanta hipóteses e forma teorias sobre aquilo a que não é capaz de aceder. Elabora leis científicas, pelas quais explica os fenómenos naturais, engendra a tecnologia com que vai ainda mais longe, na perscrutação de tudo quanto permanece insondável, seja na terra, no ar ou nas águas.
Aparentemente, o homem dominou a Terra. Aparentemente, o homem conhece, até ao âmago, o mundo em que vive.
Até que um dia, depois de séculos e séculos de acção sobre os elementos naturais, depois de séculos e séculos de euforia inventiva e de auto-emulação, depois do êxtase perante a “conquista” do espaço, depois das descobertas extraordinárias da ciência, cujo resultado, por mais paradoxal que pareça, afirma que nada sabemos, alguém abre os olhos e repara que alguma coisa está mal no mundo em que vive!
Alguém começa, então, um périplo à volta do mundo. Abre a boca e profere discursos violentos. Ataca os governos. Exige acção.
Todos pasmam, perante a ousadia de quem, deste modo, grita a plenos pulmões que é urgente salvar o mundo. E, enquanto as multidões despertam do torpor, sem saberem muito bem que passo dar a seguir, a Terra continua a girar, muda constantemente de lugar, transforma-se e transforma os habitats, constrói e, na mesma medida, destrói.
A Terra, em consequência dos seus movimentos e dos movimentos do sistema solar, a que pertence, e de todos os movimentos de todos os outros sistemas do universo, e ainda de tudo o que existe de aleatório e não se compadece de regras, de leis, de teorias engendradas pelo homem, muda de lugar e, com ela, tudo o mais que existe e do qual nada sabemos, muda igualmente. E nada muda agora como mudava antes.
Camões sabia-o quando, no século XVI, escreveu o célebre soneto:
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança:
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança:
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem (se algum houve) as saudades.
O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.
E afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto,
Que não se muda já como soía.
Numa outra perspectiva, mas dentro da mesma linha de pensamento, Galileu Galilei, no século XVII, sendo confrontado com a Inquisição, num julgamento, no qual abjurou da própria descoberta sobre o movimento da Terra à volta do Sol, dizendo que, afinal, tinha errado nas suas verificações, terá dito, baixinho, para si mesmo, depois do discurso que o salvou da fogueira: “Eppur si muove (e no entanto, move-se)!”, no exacto momento em que, perante os cardeais, ele afirmava estar imóvel a Terra, no centro do Universo!
Mais longe ainda, Heráclito, no século VI a. C. , afirmava o devir, dizendo “πάντα ῥεῖ”, ou seja “tudo flui”; e a mudança é o modo de ser de quanto existe, a tal ponto que “Não podemos banhar-nos duas vezes nas mesmas águas do mesmo rio.”
Poderíamos aumentar as digressões pelos séculos fora, na poesia, na ciência, na filosofia, no senso comum. Invariavelmente depararíamos com a verificação da mudança, por toda a parte, ora muito brusca, e visível, de repente, ora tão lenta que só damos conta anos ou séculos depois.
Perante a alteração climática, verificada e sentida no nosso tempo, mas em curso desde que a Terra começou, um dia, o seu circuito em torno do Sol e de si mesma, que podemos nós fazer, enquanto espectadores da mudança, por um lado, e seus agentes parciais, por outro?
Enquanto espectadores e vítimas da transformação do nosso planeta, é necessário que nos adaptemos às novas condições, aceitando a sua inevitabilidade, assumindo, no limite, que seremos extintos, enquanto espécie. Enquanto agentes das alterações, devemos prestar atenção aos comportamentos que degradaram e degradam o meio ambiente, produzindo mutações, e invertê-los, radicalmente.
O procedimento tem que ser individual, não vejo como podem os governos, as diversas organizações que presidem aos assuntos humanos, ser os dinamizadores das mudanças comportamentais dos indivíduos. Podem, sem dúvida, realizar cimeiras, levar a cabo debates, criar impostos e multas, proibir acções ; mas apenas a consciência individual, esclarecida e ciente do malefício causado por gestos, até há pouco considerados normais, poderá minorar, até certo ponto, o desastre anunciado.
Não devemos, nós, os mais velhos, alijar de nós responsabilidades, com a defesa de que o mal está feito e o benefício, se houver, não chegará no tempo da nossa vida. Pelo contrário : o dever de contribuir activamente para debelar o mal da civilização tem, em nós, um valor duplicado. Sendo mais velhos, temos uma quota parte maior nos efeitos nocivos dos nossos comportamentos ; por outro lado, o mundo ainda é o nosso habitat e os jovens de hoje nasceram de nós.
Somos, pois, todos responsáveis e, enquanto tal, devemos agir em conformidade. Cada um de nós, precisa de obter informação ( se a não tiver ainda) acerca dos múltiplos procedimentos que lesaram e continuarão a lesar o ambiente: os seus procedimentos específicos, individuais. Deixar de atribuir culpas à sociedade, aos governos, aos industriais… aos outros, em suma. Tendemos demasiado a cruzar os braços, alegando a nossa insignificância, crendo que um deslize nosso, um único, não pesará assim tanto na balança da desgraça. Porém, multiplicando o nosso deslize individual por milhões de deslizes individuais cometidos por todos aqueles que pensam como nós, obteremos o resultado aproximado do valor da catástrofe.
Eis, pois, o que, a visão de uma jovem activista, em viagem, num veleiro, aportando a Lisboa e fazendo um discurso, a que vai seguir-se nova viagem e novos discursos, me inspirou a escrever, agora.