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Cultura, Literatura e Filosofia

OS DIAS PEQUENOS E OS LIVROS NASCIDOS DE NOITE

Regina Sardoeira
Os dias comprimem-se nesta abordagem do Inverno, quando o sol esmorece a meio da tarde e, de repente, olhamos pela vidraça e o negrume instalou-se, iludindo o horizonte. Viramo-nos, então, para dentro, seja de casa, na quentura de um interior aconchegante, seja em nós mesmos, nestas noites prolongadas, propícias à introspecção.
Foi por estes dias que decidi, vigorosamente, encarar as páginas de dois dos meus livros, já escritos há algum tempo, mas afundados num certo bloqueio, e revisitá-los. Percebi, então, que preciso de fazer com que saiam e cumpram o seu papel de emissores, em demanda daqueles que poderão ser o público capaz de lhes justificar a existência.
O escritor, se o é, não pode fechar-se sobre si próprio, quando escreve ficções ou fábulas, já que a palavra tem como função exprimir, para o outro, ideias, pensamentos, emoções, projectando-se a si própria pelo espaço que medeia entre dois universos, alcançando o lado de fora, imprimindo nele marcas e sinais e regressando, outra vez, para a morada inicial. Um livro é um organismo, logo uma certa articulação organizada, vive e cumpre, de facto, o seu papel quando se transmuta aos olhos de quem lê. Depois de ser lido, o livro já não é o mesmo, porque as palavras atingem o espaço interior do outro e a história que ele narra, depois da leitura, não coincide com a matéria original saída da mão do escritor.
O primeiro livro, desses dois que decidi publicar, antes de sair sob a forma efectiva, como produto final, já foi lido. E eu vi esse fenómeno acontecer.
Tudo o que a minha imaginação criou e transformou numa trama, existindo, em mim, com uma certa intenção, foi invertido e reinterpretado por quem leu. Fez-se magia. Soube que o livro não tem a linearidade de sentido único que não deixa lugar para dúvidas quanto à única interpretação possível: o seu conteúdo é polissémico, atinge o leitor de modos opostos. É polémico, desperta atitudes de repúdio perante as acções dos seus protagonistas ou de uma adesão reservada ou de uma dúvida. Perguntam: onde quer a autora chegar com esta narrativa, com estas personagens? Quererá dizer isto ou, exactamente, o contrário disto? Terá esta posição, perante a realidade ou, exactamente, a posição oposta?
Estas reacções, dos leitores que escolhi para sondar o alcance dessa minha ficção, tiveram um efeito prodigioso: mostraram-me que, afinal, o que me pareceu muito óbvio, no momento da criação, tão óbvio que qualquer um seria imediatamente capaz de descodificar intenções, afinal possuía grande densidade, muitas camadas de potencial análise interpretativa.
Por essa razão, voltei a ler o texto integral. Tentei perceber o nível interpretativo por detrás desta e daquela perspectiva, sondar a possível ambiguidade que lança o leitor para atmosferas bem outras do que aquelas que tão evidentes me pareciam – a mim, que o inventei, na íntegra.
Ao inventá- lo, eu estou lá dentro, como tem que ser. E então, esses olhares díspares sobre a minha obra, foram, igualmente, olhares sobre mim, sondagens feitas ao acervo interior de que sou feita.
Na transmissão, um pouco seca, talvez até rude, das linhas ideológicas marcadas nessa minha obra, captadas por um certo leitor, eu, a princípio, não me reconheci. Como era possível as minhas personagens, nos seus actos, tenderem para aquela área interpretativa, quando eu as sentia, exactamente, na zona mais afastada, nos antípodas?
Soube, então, que o livro está, em absoluto, pronto para cumprir a sua função, soube que preciso de o alijar de mim, e entregá-lo aos leitores, percebendo que, nessa dinâmica, as interpretações vão enviá-lo para múltiplas direcções.
Vou, no entanto, deixar que se conclua o périplo do Inverno e dos dias pequenos que mergulham tão cedo na noite; e, quando o tempo de luz tiver dado pequenos saltos rumo ao império diurno, trarei, para fora de mim, estas palavras, organicamente soldadas num todo coeso, a ver o que acontece, depois.

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