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CRÓNICA DE VIAGEM [AMARANTE = MONTEMOR-O-NOVO]

Regina Sardoeira

Mote inicial da viagem : “Se é arte, não é para todos; se é para todos, não é arte.” (Schönberg)

Uma longa viagem e, contudo, uma bela viagem. Acima de mim, à minha frente, o céu azul, definido com nuvens, semelhando pássaros esfumados, em vôo, depois ornadas de cinzento , e o sol perseguindo a minha rota de entrega.

Fui acompanhada pela frase de Schönberg, dissecada por Martim Sousa Tavares , com referências gastronómicas como termo de comparação, numa rubrica da Antena 2. Suflê de espinafres com cogumelos e trufas e fast food, élites e gente comum, ou arte e não-arte, culto e divertimento .

(A propósito pensei que os museus não expõem as obras na praça pública, mantêm-nas fechadas e etiquetadas e, sempre que há visitantes, um guia explica aos espectadores tudo o que é passível de ser explicado acerca das obras, do autor, das intenções, da mensagem. O público sai do museu e, se for honesto, continuará a dizer que não percebe nada de arte!)

Martim Sousa Tavares, jovem maestro, referiu, a propósito, a necessidade de formação de públicos e logo de escolas ou acções de especialistas tendentes a possibilitar o acesso à arte – essa que, no dizer de Schönberg, se o é não será para todos! Paradoxo visível: se a arte não é para todos, de que servirá formar públicos?

O autor do programa, A Lira de Orfeu, deu-me a escutar excertos de obras variadas, de sonoridades e harmonia (ou desarmonia) invulgares, numa pesquisa erudita de que retive, essencialmente, dois exemplos.

Emanuel Nunes, compositor português (1941-2012) , terá ocupado uma parte considerável da sua vida, na criação de uma ópera, Das Märchen, baseada no conto homónimo de Goethe, com libreto da sua autoria, preparada para teatros repletos, para milhares de espectadores, e todavia transformada em fracasso: os teatros, se encheram, esvaziaram antes do fim da ópera. Uma amostra do primeiro acto de uma obra para quatro horas, fez-me ter a percepção das razões da fuga dos ouvintes, impotentes para o usufruto de uma combinação de sonoridades, arrevesada para o senso comum. Suflê.

Max Richter , compositor alemão, naturalizado britânico, reescreveu a peça de Vivaldi, Quatro Estações, tentando, segundo o autor do programa, vestir a composição com nova roupagem, mais próxima da contemporaneidade. De acordo com as palavras de Martim Sousa Tavares, Max Richter, ouvinte entusiasta da composição de Vivaldi, terá atingido uma espécie de saturação, ao sentir que a música se tornara mote para a publicidade, ou som de fundo em centros comerciais. Deixou, pois, de escutar a obra. Querendo, no entanto, recuperar o deleite e permanecer fiel a Vivaldi e às Quatro Estações, reescreveu a peça que, no CD, surge dividida em faixas e não em movimentos como na composição original. Efectivamente, escutando faixas do CD, de 2012, percebe-se, nitidamente, a linha melódica de Vivaldi. Richter ficou satisfeito com a sua composição e afirma que também Vivaldi ficaria. Eu não tenho, assim, tanta certeza. Parece-me que, neste caso específico, recriar uma peça clássica com uma linguagem contemporânea, fez a simbiose gastronómica de suflê e fast food, criando um hambúrguer de suflê de espinafre ou um suflê de espinafre, cogumelos e trufas com hambúrguer, miscelânea pouco convidativa para ambos os paladares. Ou será que, à força de insistir, o gosto altera-se e logo a recriação das Quatro Estações de Vivaldi de Richter , motivará um público alargado a aderir ao original?

Nesse caso, porém, torna-se lícito ou desejável, vestir as obras de arte, muito ou pouco herméticas, com uma roupagem diferente, cuja decifração seja um trabalho fácil para todos?

Imaginem o que seria, por exemplo, reescrever o Memorial do Convento de José Saramago, ao estilo da literatura de cordel, mantendo a trama, mas transformando as peculiaridades da escrita do seu criador …ou desconstruir, passo a passo, a Guernica de Picasso, dando às simbologias o seu carácter banal de figuras reais , ou realistas! Teríamos, então, um quadro sobre a guerra civil espanhola, assim construído: soldado morto no chão; a mãe que chora a morte do filho morto nos seus braços (esquerda do quadro); mulher em desespero enquanto a sua casa é destruída por chamas (direita do quadro); a mulher com a perna ferida que tenta fugir de todo o caos causado (no centro da pintura); a mulher com um lampião, que parece iluminar o resto dos elementos (no centro do quadro)…e por aí adiante, numa explanação banal de uma obra que vale o que vale por ter sido concebida do modo que o artista viu a cena.

No lado oposto da decifração do postulado schönberguiano não encontraremos absolutamente nada a que possa chamar-se arte, numa acepção popular? Mas o que deve entender-se por “arte popular”? Ou, no sentido lato, por “arte”?

A palavra arte remete para engenho, criação, transformação, seja partindo do real e representando-o com uma nova forma, seja obliterando o real, fora do sujeito, inventando uma super realidade, intrínseca ao sujeito, seja dispensando o real, fora do sujeito por apelo exclusivo à imaginação do sujeito, seja subvertendo ambas as realidades, fora e dentro do sujeito. De qualquer modo, sem a subversão implícita no acto da criação ( criar é inventar e logo subverter ou inverter ou desconstruir), escassamente poderemos falar em arte.

A própria arte popular, para chegar a sê-lo, desconstrói, construindo de outro modo, uma realidade que surge, ao sujeito que observa, confusa ou disparatada. Logo, se é arte, como diz Schönberg, mesmo a arte de povo, não é para todos, porque, se for para todos não é arte. Evoco, a propósito, um artista português, Inocêncio Casquinha, de Alverca, homem do povo, que, utilizando objectos retirados do lixo, se tem dedicado a construir instrumentos musicais com uma funcionalidade relativamente adequada, através dos quais faz uma reciclagem criativa; e ainda o tornado célebre Palais Idéal de Ferdinand Cheval, um modesto e sorumbático carteiro que viveu em Château-neuf- de Galaure, em França, entre 1836 e 1924. Cheval começou a construir o edifício em Abril de 1879. Ele dizia ter tropeçado numa pedra que o inspirou pela sua forma. Voltou ao mesmo local, no dia seguinte e começou a coleccionar pedras. A partir daí e durante 33 anos , no decurso da sua rotina diária de carteiro, Cheval foi transportando pedras que encontrava no caminho e, em casa, usava-as para construir o Palais idéal. Inicialmente, levava as pedras nos bolsos, depois numa cesta e, eventualmente, num carrinho de mão.

Cheval passou as primeiras duas décadas construindo as paredes externas. O Palácio é uma mistura de diferentes estilos, com inspirações desde a Bíblia à mitologia hindu e, para tornar o trabalho consistente, estabeleceu a ligação das pedras com arame, cal e cimento. O Palais Idéal é considerado um exemplo extraordinário de arquitectura naif. Arte, por isso.

Nos dois casos – o português, Inocêncio Casquinha, que, na sua garagem, cria instrumentos musicais extraordinários, o carteiro Cheval, arquitecto espontâneo, construtor de uma obra que se tornou célebre e resiste – a imaginação, o engenho, a pertinácia, a capacidade de vencer a desconfiança dos seres comuns e seguir em frente, revelam os ingredientes principais da obra de arte. Podem chamar-se Picasso, Schönberg, Saramago, Richter, Emanuel Nunes ou Ferdinand Cheval e Inocêncio Casquinha.

Martim Sousa Tavares afirmou, no programa A Lira de Orfeu, de 20 de Janeiro de 2020, que a sentença de Schönberg é “provocadora, irresponsável, proibitiva, elitista”. Qualificativos que, a meu ver, o seguimento do programa não descodificou, por inteiro. Mas, atendendo a todos os exemplos musicais que foram apresentados, e ao modo como os foi analisando à luz da frase de Schönberg, penso que, no contexto de A Lira de Orfeu, a arte será provocadora porque surge feita ópera de quatro horas, numa linguagem profundamente hermética; irresponsável porque assume as Quatro Estações reescritas de Richter, como tendo valor legítimo no quadro artístico; proibitiva, na medida em que marginaliza um público não iniciado, fazendo-o abandonar, a meio, o espectáculo; elitista, obviamente, por todas as razões.

Além do mais, se um hambúrguer do McDonald’s se executa em dois minutos, satisfazendo, de imediato, o paladar comum e logo estereotipado, a construção de um suflê de espinafres, cogumelos e trufas exige um tempo considerável e depois um paladar experimentado, capaz da adequada degustação.
Foi este, pois, um dos ambientes sonoros da minha viagem para Montemor-o-Novo.

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