Regina Sardoeira
Sou atingida pelo tempo, o tempo do relógio, esse que, de vez em quando, me recorda o inelutável caminho para diante. O outro, se existe, o tempo inescrutável das esferas, das galáxias, dos infinitos mundos que giram incansavelmente não se compadece de relógios, calendários, prazos, fixa-se em rigidez absoluta ou escoa-se na superabundância. Ninguém saberá nunca dizer o que é, mesmo, o tempo.
Entretanto, talvez seja melhor, afinal, ficarmo-nos pelo calendário, pelos relógios, esquecer esse impenetrável pulsar do universo que apenas poderemos, na íntegra, suspeitar. Na íntegra, repito, porque, sendo parte do universo, em nós reside o seu sinal.
O sinal do homem, na Terra, é esta enorme e conflituosa variedade de símbolos, sejam eles visíveis, no espaço e no tempo, sejam emanações difusas, pressentidas somente na interioridade individual ou colectiva – que o homem não se esgota na peculiaridade de si, abarca o outro e os outros numa dialéctica irremissível.
E a Terra, muitas vezes, emite um lamento, seja ele tempestade ou vaga , um lamento a repercutir na consciência, esta indefinível (e contudo presente) voz íntima a dar-nos notícia constante de nós, dentro de nós mesmos. Precisamos de escutar-nos, precisamos de prestar atenção. Escutar-nos é, afinal, aderir à consciência universal e logo perceber que este lugar que ocupamos, existencialmente falando, contém o segredo de tudo quanto existe, religa-nos ao que há de mais recôndito e também ao mais amplo. O recôndito e o amplo, o segredo íntimo e o segredo cósmico são a essência de nós. E se assim é, como entender, cabal e objectivamente, aquilo que somos?
Agarramo-nos a múltiplas definições, porque, se não definirmos, sentimo-nos perdidos, não somos capazes de lidar com a dispersão do cosmos, do qual somos parte, mas cuja idiossincrasia rejeitamos, rejeitando-nos. Nesta contradição estrutural, ainda que construída, perdemo-nos, alijamos de nós o essencial para nos deixarmos invadir pelo acidental e, nesse acidente, edificamos a nossa humanidade. Somos acidentes, voluntariamente, por recearmos a amplidão que irradia em todos os sentidos e nos dispersa, projectando-nos para o alto, onde a luz esplende insuportavelmente, ou para baixo onde o negrume reduz tudo a zero.
Contraditoriamente, almejamos a unidade e dispersamo-nos em todos os sentidos.
Queremos possuir-nos, enquanto indivíduos singulares, mas não resistimos se alienados da multiplicidade envolvente. E o relógio, o calendário, essas medidas inventadas na e pela sociedade informadora e transformadora, que nos constrói e limita, ao mesmo tempo, são as armas essenciais da nossa comum humanidade.