Regina Sardoeira
Tenho sido compelida à reflexão sobre a eutanásia, de tal modo esse tema vem a ser veiculado e discutido nos últimos dias. Se escrevo “reflexão” e se uso a palavra “tema” é na justa medida em que me parece sobremaneira difícil transitar da teoria (na qual a eutanásia é um tema, uma reflexão) à prática (pela qual se realiza um certo acto).
Eυθανασία é uma palavra grega, composta de duas outras , “eu” (bom) e “tánatos” (morte), significando, desse modo, “morte boa”. Muito simples, se analisada deste modo.
Mas é precisamente neste conceito que, na minha perspectiva, começa a perplexidade.
Se em muitas circunstâncias da vida podemos avaliar o resultado deste ou daquele acto dizendo, “foi bom ou foi mau”, estabelecendo, por essa via, um critério valorativo, não poderemos jamais fazer semelhante avaliação no que à morte diz respeito. Teoricamente, de um ponto de vista formal ou exterior, é lícito afirmar que morrer calmamente, sem dor e de modo rápido, é preferível a uma agonia lenta e sofrida. Nesse caso, a eutanásia pode justificar-se, pois, em abstracto, anula a dor, pondo fim ao sofrimento.
Na prática, contudo, trata-se de uma antecipação, ou seja, partimos do princípio de que ao sofrimento actual, num determinado caso, será preferível a sua cessação absoluta, ou seja, a morte. A questão remanescente é que, de facto (ou de experiência prévia) ninguém sabe o que é a morte. Logo, uma decisão lúcida e esclarecida acerca de um momento da vida sobre o qual não temos referências objectivas é, de todo, impossível.
O que acontece exactamente no instante da morte? Cessam as funções consideradas vitais e que são estritamente orgânicas. E a consciência? Quem pode, em primeiro lugar, definir com rigor “isso”, que designamos com este nome, mas que séculos de pesquisa não puderam definir de uma forma exacta?
Se a consciência depende do cérebro e é, por isso, um processo mental, seremos levados a concluir que, sendo anulado, por um procedimento letal o mecanismo que preside à noção de si, não haverá mais a percepção do sofrimento ou da morte. E atingir esse estado ou não-estado será propiciador de uma circunstância positiva.
Anular as funções vitais e logo a capacidade cerebral de ter consciência permitirá aceder à morte de um modo agradável. Mas de imediato reflicto sobre o que acabo de escrever. Como pode experimentar-se o “agradável” se a consciência é anulada no instante em que cessam as funções vitais e, por isso, a capacidade cerebral?
É exactamente neste ponto que emerge a minha dúvida acerca da aplicação prática deste modo de alcançar a morte.
Se, repito , teoricamente, a eutanásia pressupõe, na linha etimológica do próprio termo, uma morte (tánatos) boa (eu), na prática, ou seja, nos processos da sua aplicação, nos meios necessários e disponíveis para tal, nos sujeitos seleccionados como alvo da prática ou como seus actores, em todas as implicações legais e outras que daqui decorrem (porque o homem está envolto numa teia complexa de implicações), o processo não é, de todo, linear.
Todos sabemos que há casos e situações humanos em que a vida está presente de uma forma somente residual. Não será necessário expô-los de um modo objectivo pois, todo aquele que tenha dúvidas acerca disto, pode investigar. Em princípio, perante tais casos, aplicar a eutanásia seria uma solução adequada.
O problema reside na autorização para executá-la. Quem pode afirmar com plena autoridade : esta pessoa deve morrer? O próprio? E se ele não for capaz? E se não houver qualquer declaração prévia a permitir esse desfecho? E quais os critérios médicos que possibilitam uma tomada de decisão deste modo radical?
Poderiam multiplicar-se as questões: a cada nova pergunta, nova perplexidade nasceria.
Decidir morrer pode ser considerado o apogeu da autonomia. Decidir apressar a morte de quem sofre pode ser a expressão máxima do respeito pela dignidade humana. Pode ser, caso nos apoiemos na premissa da autoridade que o facto de estarmos vivos e conscientes nos outorga ou na legitimidade que sobre nós impende de decidir sobre a vida de outrem.
Qualquer um pode, de facto, suicidar-se sem pedir licença para tal. Acerca desse suicídio, realizado, em geral, de um modo secreto, nada pode legislar-se.
Qualquer um pode pedir a alguém que o ajude a morrer, numa situação específica, por ele determinada. Neste caso aquele que apressa a morte de outro, ainda que por sua vontade expressa, poderá ser considerado homicida, ao abrigo da lei.
Creio que a necessidade de legislar acerca deste acto procede de factores de ordem social. O suicida ainda é alvo de condenação e aquele que perpetra a morte de outro (mesmo invocando a piedade) ainda é considerado assassino e punido por isso.
Porém, estabelecer uma lei, gerada por humanos, que têm, desta questão, um conhecimento limitado, nunca será consensual. Terá sempre lacunas, incómodos, excepções, necessitará do recurso a muitos agentes de muitas áreas científicas, técnicas e legais, será um processo complexo, moroso, permeável a abusos.
Permitir a eutanásia como solução humana para a doença, dura e irreversível, parece ser um acréscimo de liberdade: para aquele que sofre e para os que o rodeiam e são testemunhas. Mas, no outro lado da questão, semelhante lei pode ser propiciatória de múltiplos atentados à vida, cuja dignidade pretende, por ela, ser estabelecida.
Eu vejo doentes sem recuperação à vista rodeados de cuidados, quer por parte dos familiares, quer por via das instituições de suporte e apoio. Vejo homens e mulheres prisioneiros de uma cama, num quarto, ou de uma cadeira de rodas, que não são capazes de manobrar, a celebrar a vida e a receber apoio por isso. Vejo homens e mulheres nascidos com deficiência incapacitante a ocuparem o seu espaço na casa e na sociedade onde os protegem e cuidam.
Uma lei aprovada quanto à legitimidade de interrupção da vida visará todos os casos ou somente alguns acerca dos quais urgirá estabelecer critérios?
Alguém diz que quer morrer, por não suportar a vida: abrangerá a lei este grito lúcido? Alguém diz que vai ajudar o familiar a morrer porque este lho pediu quando podia fazê-lo: abrangerá a lei esta vontade, transmitida a outro? Outro prefere ter o familiar junto de si e ocupar-se dele mesmo se foi desenganado pelos diagnósticos médicos: terá a lei poder para obrigá-lo a tomar a decisão radical?
Eu creio que a eutanásia é uma prática comum e quotidiana desde tempos ancestrais: e é por isso mesmo que a palavra existe e também uma história, a ela associada, que pode ser desvendada e narrada. Eu creio que os homens, ao longo dos tempos, no segredo dos contextos individuais ou familiares, sempre praticaram a eutanásia. Alguns podem ter sido punidos; mas a maior parte escapou. Creio ainda que, nos hospitais, é feita a eutanásia, à revelia da vontade expressa do doente ou dos familiares. E creio também que legislar, dizendo, “é permitido doravante realizar a eutanásia”, se, por um lado, despenaliza actos que já são comuns, por outro abre caminho a situações equívocas e, de modo nenhum, humanamente aceitáveis.
E é por todas estas razões, e apesar dos argumentos a favor e contra que tenho podido analisar, que não sou capaz de tomar posição, em absoluto, acerca deste tema. Limito-me a levantar questões, sabendo que jamais serão respondidas satisfatoriamente, porque vão directamente ao cerne íntimo daquilo que a humanidade mais presa – a vida.
Nos antípodas da morte evoco o nascimento, essa hora que todos vivemos e não logramos recordar, como se um véu houvesse sido lançado sobre nós para salvaguardar-nos, enquanto integridade. Foi o primeiro sopro da vida e nenhuma consciência é capaz de actualizá-lo, pela memória; no pólo oposto da dicotomia ergue-se a morte, momento ligeiro, breve ou tumultuoso a que, do mesmo modo, jamais a consciência acederá. São, por isso, dois marcos da existência pelos quais se unem as linhas de um ciclo e, muito embora possam ser testemunhados por outros e convertidos em história, representam, para aquele que os vive, um segredo fechado.
Legislar, estabelecendo regras e condições, acerca de um facto, deste modo tornado secreto, devido às suas próprias características, não será exceder todos os limites? Querer sistematizar um acontecimento imerso no desconhecido (se conhecer é “ter experiência de”) não será de uma extrema irresponsabilidade? Nomear especialistas para que ponderem sobre a oportunidade ou não de possibilitar que alguém passe, por decreto, a fronteira da vida, não será um artifício desmesurado?
Que fiquem, ao menos, as questões.