Regina Sardoeira
Atónita com as múltiplas notícias, comentários, opiniões (…) acerca dos meus tratos perpetrados contra um grupo de cães, encontrados na herdade de um toureiro, questiono, por fim: um toureiro não é, por definição, aquele que maltrata animais?
Nunca assisti a esse hediondo espectáculo – a tourada. Mas o pouco que tenho observado, em anúncios, cartazes, excertos de vídeos, etc., revelou-me, há muito tempo, o carácter violento dos actos que, sob o nome de divertimento, ocorrem em muitas arenas.
Um touro é impelido a entrar num espaço vedado, e um homem, a pé ou a cavalo, incita-o, persegue-o, arremete na sua direcção, ameaça-o até que consegue cravar-lhe um ferro no dorso. O animal, ferido, sem perceber o que acabou de acontecer, reage; e o toureiro vai-lhe espetando novos ferros, numa sequência de horror. O touro, espumando, desesperado, agita-se e corre pela arena, perseguido pelo homem e carregando, no dorso a escorrer sangue, os ferros coloridos.
O público, excitado, aplaude, ouve-se música, as cores das roupas do toureiro são vivas e adornadas…e o animal, potente mas humilhado, exibe dramaticamente a sua condição agonizante.
Chamam “festa brava” a este ritual de sacrifício, absolutamente inútil no que concerne a um animal feito para a vida livre; e, enquanto espectáculo, atrai inúmeros adeptos. Ora, quer os toureiros, quer os espectadores, quer todo o conjunto de organizações e entidades que favorecem a realização destes eventos, não passam de criminosos. E é por isso que, embora me sinta, naturalmente, chocada com as imagens cruas daqueles galgos escanzelados, doentes e tristes, não sou capaz de me surpreender.
Também não dou a minha adesão, por inteiro, às críticas, denúncias, petições e toda a parafernália de reacções à súbita descoberta de um crime, já antigo: porque o comércio, em torno da crueldade contra animais, é a vocação, tornada carreira profissional, desse toureiro, em particular. Parece-me hipócrita esta revolta súbita, tanto mais que nós, humanos, de um modo natural, proveniente da nossa condição de animais omnívoros, consumimos outros animais na nossa alimentação. Logo, defender e proteger com afinco certas espécies, assumir atitudes de revolta quando alguém as maltrata e, em simultâneo, sentarmo-nos à mesa para degustar um bife, representa uma contradição.
Há instantes, nas notícias, ouvi falar das queixas recebidas e registadas, por quem de direito, contra maus tratos e abandono de animais e das multas e penas respectivas; logo a seguir, um representante de proprietários de agro-pecuária queixava-se dos enormes prejuízos causados por matilhas de cães vadios que atacaram, para matar a fome, os animais, de certas propriedades, criados para serem comercializados em prol da alimentação de humanos! Portanto, por um lado, multam-se e condenam-se pessoas que agridem e desprezam os seus animais de estimação, por outro, protesta-se e exige-se solução, porque esses mesmos animais, entregues a si próprios e sem recursos, procuram matar a fome, satisfazendo a sua natureza de carnívoros, nos locais onde encontram presas…que, afinal, estão ali, feitos presas de outros predadores!
Os homens são omnívoros e não, essencialmente, carnívoros o que pressupõe a possiblidade de programar uma alimentação que não sacrifique animais. Enquanto o homem não for capaz de fazer essa opção, as suas teorias relativamente ao cuidado com os animais e à sua protecção, carecerão de consistência.
Obviamente que, quando são abordadas as questões acerca dos maus tratos e abandono de animais, os visados são, invariavelmente, cães e gatos, e não touros ou galinhas ou peixes. Mas vejamos aqui, então, uma espécie de atitude discriminatória: protejamos os cães e os gatos de cuja companhia obtemos benefício e ignoremos todos os outros, esses que mantemos e tratamos para a seguir matarmos, esventrarmos e comermos!
Dir-me-ão que a ordem natural da vida é esta. Que o homem se alimenta, desde sempre, de outros animais que estão aí, justamente, com essa finalidade. Que dificilmente conseguiremos ver num touro, numa galinha, num bacalhau o nosso animal de estimação. E no entanto, qualquer um destes tem, na natureza, um lugar e um papel próprios e talvez mereçam usufruir da vida que são capazes de sentir.
Trata-se, sei-o bem, de um problema humano de grande complexidade. Não creio que fosse impossível permitir a todas as espécies existentes na natureza o cumprimento da sua real função, já que, uma vez que estão na terra, têm, forçosamente, alguma. E, se escrevo “permitir” é justamente na medida em que foi a humanidade, que, ao longo dos tempos, se fez a espécie dominante, apropriando-se das outras a seu bel prazer. Mas vejo, claramente, que a multiplicidade de interesses económicos, ligados à criação de animais para consumo, constitui uma barreira praticamente intransponível nos dias de hoje.
Por enquanto, a humanidade percebeu que deve proteger as espécies que domesticou e com as quais acede a coabitar; e ainda está longe o tempo em que essa protecção poderá ter efeitos alargados. Por enquanto, as pessoas horrorizam-se porque um toureiro maltrata sistematicamente os galgos de que já não tira proventos; mas nada referem quando ele vai para a arena maltratar touros num espectáculo sangrento. Pode ser que um dia todos encontrem, na terra, o seu lugar.