Regina Sardoeira
Há uma evidente complexidade na formulação desta pergunta, já que necessário se torna descodificar, se possível, o sentido implícito em cada um dos termos nela contidos.
Se o termo “quem” pretender aludir a qualquer entidade sobrenatural, criadora da vida, na total acepção da palavra, poderemos responder que, ao criá-la, ele se tornou o seu dono, pelo que teremos que responder afirmativamente à questão. Por outro lado, e partindo do mesmo pressuposto, o criador pode ter outorgado a propriedade da sua obra – a vida – àquele a quem a entregou e, ao fazê – lo, atribuir -lhe livre-arbítrio, em pleno.
Numa primeira abordagem, estaríamos, pois, a considerar que, se a vida foi criada por um ser todo – poderoso e lhe pertence, por ter sido ele o único responsável dessa obra, somente ele terá poder de propriedade, em relação a ela, e a todos os níveis possíveis; por outro lado, se a vida, tendo sido criada, foi posteriormente oferecida a quem dela pode desfrutar à vontade, então, ela deixou de pertencer a quem a criou para se tornar propriedade do que dela usufrui.
Defendemos, por isso, à partida, que os donos da vida são, em simultâneo, o seu criador, e ainda aquele ou aqueles a quem ela foi atribuída, enquanto oferenda.
Convém, contudo, especificar que a vida (do termo latino vita) é um conceito muito amplo, abrangendo, por isso, múltiplas definições.
Poderá referir-se ao processo, dentro do qual os seres vivos são uma parte; ao espaço de tempo entre a concepção e a morte de um organismo; à condição de uma entidade que nasceu e ainda não morreu; e àquilo que faz com que um ser esteja vivo.
Detenhamo – nos, um pouco, nas três possibilidades iniciais.
Na primeira acepção, consideraremos, em contra-argumento, não ser adequado falar em “dono da vida”, pelo menos no sentido humano da expressão, dado que o homem não controla, de todo, esse processo.
Quanto à segunda, percebemos, de imediato, que, em múltiplos actos humanos, se executa a interrupção do processo vital: seja no sacrifício de que são alvo todas as espécies que é uso servirem de alimento, quer no momento em que se toma a decisão de pôr fim a uma gravidez indesejada ou se abate um animal ou uma pessoa por estarem em situações limítrofes, onde a vida carece de qualidade, ou ainda em todas as guerras da História cujo desfecho e consequência arrastam consigo mortes antecipadas.
A este segundo aspecto poderemos ater-nos, confirmando o argumento inicial, já que o ser humano, quando leva a cabo qualquer um dos actos enunciados, pretende ser o dono das vidas que aniquila, seja, ainda, na imaturidade do útero, seja na decisão de possibilitar uma boa morte àquele que sofre sem lenitivo, seja na autorização e incentivo ao assassinato, em todas as guerras da História. Mas terá como justificar-se esta pretensão humana de posse?
No terceiro sentido, a análise conduzir-nos-á ao problema, muito complexo, da definição de vida.
Comecemos pela polémica investigação acerca da sua origem. E fazemo-lo para logo verificarmos que não existe, ainda, nenhuma explicação geradora de consenso ou de unanimidade neste domínio. Porém, a maioria dos modelos explicativos, actualmente admitidos, baseia-se, duma forma ou doutra, nas seguintes descobertas:
A experiência de Urey-Miller prova a existência de condições pré-bióticas aceitáveis, tendo como resultado a criação das moléculas orgânicas mais simples e consistiu, basicamente, em simular as condições da Terra primitiva postuladas por Oparin e Haldane . Para isso, foi criada, na experiência referida, um sistema fechado, sem oxigénio gasoso, onde inseriram os principais gases atmosféricos tais como hidrogénio, amónia, metano, além de vapor de água. Através de descargas eléctricas, e ciclos de aquecimento e condensação de água, obtiveram, após algum tempo, diversas moléculas orgânicas (denominadas aminoácidos).
Deste modo, foi possível demonstrar, experimentalmente, que poderiam aparecer moléculas orgânicas, através de reacções químicas, na atmosfera, utilizando compostos que estariam nela presentes. Estas moléculas orgânicas são indispensáveis para o surgimento da vida.
Levando em conta as investigações do astrónomo e astrofísico Thomas Gold, a Teoria da Biosfera Profunda e Quente revela a existência de consideráveis sinais de que a vida microbiana é extremamente difundida na profundidade da crosta da Terra. A confirmar esta teoria, sabe-se que a vida tem sido identificada em vários locais no oceano profundo, ligada a emanações de gases primordiais. Essa vida não é dependente da energia solar e da fotossíntese, como sua principal fonte de fornecimento de energia, e é, essencialmente, independente das circunstâncias da superfície terrestre. A sua reserva de energia vem de fontes químicas, derivadas de fluidos que ascendem, originários de níveis mais profundos na Terra. Os seres unicelulares vivendo em tais ambientes são hoje classificados em um super-reino próprio, o Archaea, e podem, muito bem, guardar, em si, os mecanismos que deram origem aos primeiros seres vivos. Esta hipótese conduz-nos para áreas enigmáticas onde, efectivamente, a questão de saber se há um dono da vida se revela votada ao fracasso.
Segundo a teoria, em massa e volume essa biosfera profunda pode ser comparável com toda a vida da superfície da Terra. Tal vida microbiana poderia, em princípio, explicar a presença de moléculas biológicas em todos os materiais carbonosos na crosta; e considerar que estes materiais são, na sua totalidade, provenientes de depósitos biológicos acumulados na superfície não seria, portanto, necessariamente válido.
A vida, tal como é conhecida, poderia encontrar-se, por hipótese, também no interior de corpos planetários do nosso Sistema Solar ou mesmo em objectos isolados vagueando no espaço interestelar, uma vez que muitos deles têm condições tão adequadas para que isso ocorra como as encontradas em certas situações, aqui, na terra, embora constituindo ainda ambientes totalmente inóspitos nas suas superfícies, para a quase a totalidade dos seres vivos. Pode-se, mesmo, especular que a única alternativa é a vida ser amplamente distribuída no universo, habitando, desde corpos planetários no nosso sistema solar, até outros sistemas estelares. Sabe-se, hoje, que a nossa tabela periódica é responsável pela descrição de toda a química do universo.
A vida, tal como a conhecemos tem, por base, o carbono e a água, e a energia é obtida, usualmente, através da presença de oxigénio, esteja ele livre, no ar ou sendo libertado através da redução de compostos como óxidos, sulfatos, e outros. As fontes de carbono estão relacionadas com hidrocarbonetos primordiais, sobretudo o metano. Tais substâncias primordiais encontram-se amplamente distribuídas no universo, e supor que os processos que as originaram ocorreram apenas aqui na Terra é, para muitos, no mínimo, grande pretensão.
Uma extensão desse argumento leva-nos à hipótese da panspermia, que estabelece a hipótese de que a vida existe em todo o universo, distribuída por meteoros, asteróides e planetoides. Ela propõe, por isso, que existem seres vivos capazes de sobreviver aos efeitos do espaço, ficando presos nos escombros que são ejectados ao espaço, ou por colisões entre pequenos corpos do sistema estelar e planetas que abriguem vida, ou mesmo por catástrofes maiores de natureza semelhante.
A vida, pois, tal como é conhecida, apareceu e, certamente, evoluiu na Terra. De acordo com o físico Marcelo Gleiser em seu livro “Criação Imperfeita”, a vida teria surgido na Terra há cerca de 4 biliões de anos, sendo certo que os primeiros fósseis datam de 3 430 mil milhões de anos atrás.
Ora, ao fazermos referência a todas estas teorias, hipóteses e experimentações científicas percebemos, à saciedade, que, contrariamente ao que havíamos defendido antes, admitir a existência de um criador da vida, e logo, seu presumível dono, não fará sentido. Muito menos poderá ter aceitação a ideia de que, sendo o homem uma espécie que a si mesmo deu privilégios e autoridade sobre as demais, e reciprocamente, ele é o dono da vida que em si pulsa ou de outras vidas sejam elas, afinal, quais forem.
Portanto, ainda que uma primeira abordagem pareça indicar que existe uma entidade sobrenatural, também chamada Deus, responsável por toda a criação e logo, dono da vida, ou que, essa mesma potência tenha outorgado ao homem, não somente a vida mas o seu absoluto e livre-arbítrio tornando-o, por essa razão, dono da vida e permitindo-lhe, nessa medida, atentar contra as outras vidas, perpetrar o aborto ou a eutanásia, posteriores aprofundamentos parecem contrariar esta tese.
Se, no entanto, tivermos somente hipóteses explicativas acerca da origem da vida, se estendermos essas teorias até à dimensão extra-terrestre, para ali considerarmos a existência das matérias essenciais à vida, nomeadamente, o carbono e a água, será precário admitirmos que alguém, e logo uma pessoa, possa ser dono da vida.