Regina Sardoeira
“Age de tal maneira que possas querer que a norma da tua acção se converta em norma de conduta universal.”
Nem sempre é fácil interpretar, compreender e assimilar esta formulação do imperativo categórico kantiano; mas muito mais difícil é agir sempre de modo a pô-la em prática.
E no entanto, levando em conta as palavras todas, e estabelecendo a sua articulação correcta, poderemos aceder a uma das formas de racionalizar a conduta dos homens, estabelecendo a harmonia no todo social.
Sendo uma norma de valor prático, não pode interpretar-se desligado da acção humana e mais especificamente da acção de cada um. E é um apelo à vontade, essa que, segundo Kant é boa e logo apta a legislar para o bem.
Vejamos, em primeiro lugar, a primeira intenção da fórmula: “Age de tal maneira que possas querer (…). Não se trata única e exclusivamente de “querer” mas de “poder querer” já que o sujeito da acção deve estar de posse de toda a sua autonomia e logo livre de interesses, de impulsos animais, de instintos. De facto, os interesses ou mobiles da sensibilidade travam a liberdade do querer, impõem condições ao sujeito que, mesmo dotado de boa vontade, admite ceder à sua condição inferior. Segundo Kant, o homem é constituído por três níveis ou disposições: a animalidade, pela qual age instintivamente, impelido pelas forças básicas do instinto, não usufruindo, por isso, da liberdade, a racionalidade, que lhe mostra o dever como base racional da acção, a personalidade pela qual o homem é legislador das regras às quais se submete. Logo, para “poder querer” o sujeito da acção necessita de conseguir sobrepor a sua dimensão mais elevada – a personalidade – às outras duas que, sendo constitutivas de si, não lhe conferem a autonomia, ou seja, a capacidade de criar as leis da própria conduta.
Portanto, o imperativo categórico é um mandamento criado pelo sujeito da acção, enquanto personalidade, que domina as condicionantes inferiores de si, contendo-as e obrigando-se a agir moralmente. O imperativo categórico não é exterior ao sujeito, não promana de outras instâncias às quais ele terá que submeter-se : é o próprio indivíduo que, pela sua vontade, cria as leis de conduta pelas quais virá a reger-se. Esta obrigatoriedade decorre, pois, da tripla natureza do homem que, sendo animal, deixa que os impulsos o controlem e, sendo racional, acede a justificar muitas condutas de acordo com um certo interesse individual. Mas se o sujeito da acção estiver imbuído da sua personalidade e a sobrepujar às outras dimensões, ele sabe que, em sociedade, qualquer acção só tem valor ético caso tenda a universalizar a máxima orientadora da sua conduta particular. Uma máxima é a regra individual, e logo subjectiva, que preside às accões particulares; logo, a pergunta que o sujeito deve fazer a si mesmo, antes de praticar uma accão é a seguinte: “A minha vontade quer que este meu acto, esta minha decisão, possam ser praticados por todos, sem prejuízo de nenhum? Quero mentir neste momento; poderá a minha vontade transformar este desejo, que me parece aceitável, na específica circunstância em que ocorre, num mandamento universal que seria assim equacionado: todos devem mentir?” Ora, a razão vai responder negativamente porque numa sociedade equilibrada a mentira não pode constituir-se como base das relações, já que se mentir fosse uma norma de conduta universal, ninguém poderia confiar em ninguém.
A mentira, seja por comodismo, por vergonha, por defesa, por piedade, por manha, decorre invariavelmente das disposições inferiores do homem e não da sua vontade, enquanto personalidade. É, por essa razão, eticamente condenável.
Poderemos estender o exemplo da mentira a todas as outras acções negativas do homem, no meio dos outros homens. Devo roubar? Devo matar? Devo suicidar-me?
Kant desenvolve a sua ética levando em conta estas e outras acções e vê sempre nelas, enquanto razão prática, a impossibilidade de a vontade querer que elas sejam universalizáveis ou seja que possam livremente transformar-se em leis de conduta válidas para todos.
O imperativo categórico, que assenta nesta formulação e se desdobra em outras duas, seria sem dúvida o motor da edificação de um mundo ético e logo justo.