Regina Sardoeira
Olhar o mundo dos homens, nestes dias atípicos, é um empreendimento assaz complexo.
Somos gregários e então criámos concentrações espantosas, um pouco por todo o lado. Temos a vocação da turba, do tumulto, do burburinho, do aplauso. Esquecemo-nos de cultivar o silêncio, a introspecção, o recolhimento, o âmago de nós.
Quando uma catástrofe nos reduz à nossa própria e exclusiva companhia, e olhamos ruas, praças, avenidas e esplanadas bruscamente desertas, lojas de portas cerradas e um espaço marcado entre nós e os outros, temos uma enorme dificuldade em aceitar. E embora nos avisem acerca da absoluta necessidade de respeitarmos normas, contrárias à nossa dimensão eminentemente social, normas cujo cumprimento terá poder para nos restituir à condição anterior, tendemos a quebrar os limites, a ignorar os avisos, a furar o cerco.
Também somos esta impulsividade irracional, esta obstinação na excepcionalidade que achamos ter, este egoísmo desmedido, esta insensatez.
O homem é “sapiens/demens” e nunca é excessivo citar Edgar Morin, em “O Paradigma Perdido”. Enquanto “sapiens”, adquiriu competências extraordinárias e ficou apto a liderar, sensata e racionalmente, o mundo em que vive. Mas o “demens”, o apelo à loucura, a necessidade de fender limites, transformou a lucidez do “sapiens” na loucura do “demens”.
É um animal demente, este homem que violenta a natureza, nela própria, enquanto seu habitat, e em si mesmo, enquanto sociedade ; é um animal demente, este homem que cria multidões e as faz alastrar por todo o lado, numa ânsia desmedida de ocupar todos os espaços; é um animal demente, este homem que ama o vozear estridulante, feito cacofonia imperceptível, dos sítios onde acorre para se esquecer de si.
Se é certo que este polo humano da demência, ao longo da História, gerou a excepcionalidade do génio, do artista, do inventor, e projectou a humanidade para além de si mesma, a verdade é que o “sapiens”, se entrar profundamente no seu mais íntimo recesso, deverá concluir que milénios de tentativas, na aventura da superação dos limites, pouco acrescentaram ao nosso planeta, à sociedade, ao indivíduo.
Vejamos alguns exemplos. Em 1969 o homem pisou a Lua. Deu uns passos na superfície do nosso satélite, recolheu uma ou duas amostras, viu a esterilidade do solo e a impossibilidade de ali respirar normalmente, e regressou à Terra. Anos de estudo, de experiências falhadas, de sacrifícios de vidas, de investimento tecnológico e económico, apenas para um pequeno salto , um ligeiro e periclitante passeio e depois umas imagens, de visibilidade ténue, como prova única desse feito. E eu pergunto: que nota positiva temos, hoje, sessenta anos decorridos, de que essa demência representou um acréscimo da nossa humanidade?
Einstein, por meio de sua famosa equação — E = mc² —, mostrou que massa e energia são intercaláveis, preparando o terreno para o estudo da energia nuclear e, consequentemente, da bomba atómica. Uma equação cuja importância mudou o universo da física mas que, ao ser usada para construir a temível bomba atómica, revelou um uso maléfico.
Escreve Roger Garaudy : “ Nem tudo o que pode ser feito deve ser feito. Fabricar bombas atómicas, ir à Lua, fazer viver de forma vegetativa homens, cuja degradação biológica é irreversível, manipular amanhã a herança genética, circular à velocidade do som, nada disso constitui em si mesmo um bem absoluto.” (in Palavra de Homem)
‘Nada disso constitui em si mesmo um bem absoluto.” – reforço, repetindo a última frase de Garaudy. Se estas conquistas, oriundas do “demens” que coabita, no homem, com o “sapiens”, não são um bem absoluto e se o seu valor relativo, ou francamente inútil ou pernicioso, perturba e destrói o equilíbrio natural de que o planeta necessita para ser o nosso habitat por excelência, devem ser tentadas? E se, uma vez tentadas, mostram que são uma possibilidade, mesmo ignorando eventuais consequências maléficas, a longo prazo, deve persistir-se?
Creio que esta pandemia no centro da qual vivemos todos, actualmente, nos revela à evidência a profunda necessidade de mudança.
Somos seres sociais, é certo; não nos obstinemos em ser rebanhos ou hordas. Ansiamos por divertir-nos em conjunto, frequentando sítios inóspitos de onde saímos atordoados; cultivemos com mais frequência o encontro íntimo em nós mesmos. Fazemos barulho, batemos palmas, falamos demasiado alto; habituemo-nos a escutar o som do silêncio, o intervalo criador entre dois pensamentos.
Queria ser optimista e supor que este exercício de contenção a que fomos sujeitos, com o único objectivo de preservar a vida, individual e colectivamente, viesse a constituir um exercício de profunda reflexão, de forma a que, no futuro, uma nova humanidade visse a luz. Porém, analisando a dicotomia fundante do género humano em milénios de história, não creio inteiramente, nessa possibilidade.