Paulo Duarte
Por esta altura já são muitas as palavras à volta da pandemia que atravessamos. Calam-se, e bem, as ruas e avenidas das nossas terras, mas surgem os ruídos interiores, sendo exteriorizados em palavras aqui e ali pelas redes, jornais, opiniões. A pedido da BIRD Magazine, que muito agradeço o convite, partilho algumas ideias soltas à volta da fé nestes tempos. Espero contribuir para serenar alguns corações nestes tempos novos que vivemos.
Olhando para os últimos vinte anos, todas as doenças têm tido o ataque à respiração como principal sintoma. A respiração caracteriza a vida orgânica. Começa com o grito e termina com o “último suspiro”. A respiração é fundamental e nós humanos somos os únicos que a conseguimos ajustar voluntariamente em inspirações/expirações profundas, tendo essa acção benéficos efeitos neurológicos. Os efeitos são a tranquilidade a começar a percorrer todo o ser.
O alento, em contexto bíblico, está ligado, de forma especial, a duas realidades: 1) “nefesh”, em hebraico, que depois se traduziu em “psiché”, em grego, e na nossa língua, uma das possibilidades, “alma”; 2) “ruah”, em hebraico, “pneuma”, em grego, e na nossa língua, uma das possibilidades, “espírito”. Depois de moldear o ser humano do pó da terra, Deus insufla o alento divino.
Os últimos anos têm caracterizado a nossa humanidade desde a produtividade. A economia, os valores de mercado, o dinheiro, o ter, têm crescido em grau de importância, relegando para o lado a importância das relações, da espiritualidade, do tempo, da paragem, do silêncio. O cansaço social está à vista. Quando há cansaço o sistema imunológico perde a força. A nossa humanidade, com tantas maravilhas, é certo, está cansada. No cansaço tem de haver paragem.
Quando paramos voluntariamente, férias, reflexão, oração, somos nós que controlamos o “ter”, sendo o “ser livre” a falar mais alto. Quando somos obrigados a parar, por doença pessoal ou colectiva, reparamos que é o “ter” que nos controla, estando o “ser” subjugado, não só o ser-pessoal, como o ser-colectivo, incluíndo a natureza.
Grande parte de nós está em casa. Assim tem de ser. Esta paragem forçada pode ser aproveitada para uma revisão de vida. Religião, na sua etimologia, significa re-ligar ou re-ler. Se nestes tempos somos confrontados com o simbólico da respiração, então, porque não tirar um tempo para crescer na interioridade, na espiritualidade, religando zonas de alma que possam estar dispersas, esquecidas, rejeitadas? A fé tem por base a confiança da luz, da clarividência que ajuda a fazer caminho, para lá de todas as sombras. A fé alicerça-se na vida maior que abre perspectivas da existência. Que releituras há a fazer dos acontecimentos vividos de agora ou já de longe, que deixaram feridas? Será que se considera essencial o mesmo de sempre?
Tomáš Halík, no livro “Paciência com Deus”, escreve “há que repetir uma e outra vez: a fé não é uma questão de problemas, mas de mistério, por isso nunca devemos abandonar o caminho da busca e da interrogação.” Ainda mais nestes tempos novos, em que tudo se abre na reinvenção da humanidade. Cada pessoa é chamada a não ficar no mesmo de sempre. Precisamente desde uma perspectiva de fé, o ser humano vai-se perceber, na sua individualidade, membro da grande comunidade que é a Casa comum de todos nós. Por isso, a paragem, dolorosa e obrigatória, está a levar a pôr em diálogo o “ter” e o “ser”, restabelecendo o ajuste necessário para a humanização. Os novos tempos só podem ser de novo alento, que nos encaminhem para um profundo sentido religioso e de fé: sermos uns para os outros nas muitas dimensões do Amor.