Mateus Oliveira
A partir do momento em que se deu a percepção geral de que estávamos perante uma pandemia efectivamente muito perigosa, apressamo-nos a desenvolver colectivamente processos semióticos – e inócuos – de romantizar o problema (com arco-íris, hashtags, etc.) como forma de, eventualmente, criarmos uma espécie de pseudoprotecção mental ao vírus. Era sobre isto que me propunha reflectir. Mas, no seguimento do que tenho feito e ainda que me foque no inevitável coronavírus, regresso à arquitectura porque sobre o que referi na frase introdutória deste breve artigo a psicologia há-de saber explicar melhor o “fenómeno”*.
Regresso, assim, a um “lugar” onde me sinto mais confortável. Obrigados a cumprir quarentena, percebemos que há um dispositivo espacial que adquire, neste momento, toda a atenção na arquitectura doméstica: a varanda. A varanda sempre assumiu um papel particularmente fascinante na casa, o de intermediar a relação entre duas realidades opostas, assumindo-se como espaço de exterior interiorizado. É um espaço seguro que abarca o mundo lá fora… ou, antagonicamente, um espaço que se permite transpor pela envolvente não contida.
Por estes dias, como consequência do confinamento doméstico a que todos estamos sujeitos, a varanda adquiriu um papel fundamental na forma de viver o mundo, tornando-se lugar privilegiado de vivências múltiplas, ultrapassando – mais do que nunca – a sua dimensão física para uma dimensão experiencial e comportamental. E é aqui que percebemos, de forma inequívoca, que a varanda se assume como paradigma do antagonismo que tomou conta da sociedade actual.
É nas varandas que emerge o melhor de cada um e onde vemos manifestações de afecto incríveis; que se têm potenciado novas relações de vizinhança; onde pulula a dimensão mais criativa de cada um como forma de confortar os outros; e onde se manifesta a solidariedade e o reconhecimento por aqueles estão na linha da frente do combate a esta epidemia que mudou radicalmente a nossa forma de estar e de ver no/o mundo. Mas, simultaneamente, é também através das varandas que o pior de nós tem sobressaído. Foi às varandas que a população de um bairro de Valência se apressou a injuriar duas mulheres que, pasmem-se, chegavam a casa depois de um turno de 24h como médicas no hospital da cidade para o mais que merecido descanso. Sim, nessas mesmas varandas onde horas antes tinham estado todos a aplaudir os profissionais de saúde… Ou onde, como aconteceu em Leganés, a população arremessou objectos e impropérios a um pai que levava o seu filho ao parque vazio. Questionado pelas autoridades, esse mesmo pai – na posse de um atestado médico e munido de máscara e luvas – explicou que aquela era a forma de tranquilizar o filho autista do “sufoco” doméstico.
As varandas, valerá a pena repeti-lo, tornaram-se apenas e só o paradigma do antagonismo em que nos tornamos enquanto sociedade. Que saibamos – TODOS – recarregar-nos de humanidade num tempo que exige, a cada um, que saibamos ser a melhor versão de nós mesmos.
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*No dia seguinte a ter escrito este pequeno artigo, há uma breve reflexão do Eduardo Sá sobre este assunto que vale a pena ler: https://www.eduardosa.com/blog/notas-soltas/vai-ficar-tudo-bem/