Paulo Duarte
Suave amanhecer: é como vejo a Páscoa. Este ano, este ano tão novo e com tanto a acontecer, impediu cânticos efusivos de “Aleluia” e “Ressuscitou”. Depois do caminho quaresmal que convida à conversão, dentro das casas, as cruzes com ramos, em oratórios personalizados, deram lugar a pés lavados em família, e flores coloridas a recordar a luz pascal. Uma páscoa mais interior, sem grandes expansões, que se vai estendendo em oitava, depois em mais dias perfazendo cinquenta até ao Pentecostes.
Gosto de pensar, e rezar, a Passagem com a suavidade de quem vai integrando a beleza do mistério na sua vida. Sem automatismos, mas a saborear o caminho de apropriação de coração deste grande acontecimento da existência. Os discípulos, onde se incluíam mulheres, não viveram esse momento com total segurança. Agitou-lhes o medo, a confusão, muitas perguntas. Sentir e viver a certeza da Vida daquele que viram a ser crucificado não pode ser encarado como novo-riquismo de fé, esfuziante. É gradual, onde a sombra de Sexta-feira Santa vai sendo iluminada com a presença do Ressuscitado revelada primeiramente por uma ausência: o túmulo está vazio. Aí não é o lugar de Deus, mas os templos da existência humana.
O vazio é realidade pronta a ser preenchida, habitada. Pode ser o coração em saudade de encontros com família e amigos. O confinamento desperta o desejo de estar, de celebrar, de relacionar. É algo tão profundamente humano e divino. Deus deseja habitar nos espaços de sofrimento para resgatar mortes e voltar a dar vidas. Tornar cada dia o primeiro da semana, promovendo renovação e nova perspectiva da realidade, por mais dolorosa que possa ser. Chegarão dias de reencontro, de ver como novos olhos a beleza da amizade. Agora, ainda que forçados, sem ver o outro, há que despertá-lo na intensidade da recordação.
S. João, nos textos pascais, fala-nos mesmo do nada ver que tudo vê. E quantas vezes dá-se a sensação de plenitude, em que se torna clarividente algo obscuro na nossa vida, revelando-se novo caminho em experiência de contemplação? A Páscoa tem a sua dose de estética, em revelação de contemplação, de sombras que se vão dissipando na experiência luminosa de novo ver. Ou de nova criação. Faça-se luz, ouve-se no primeiro momento da criação. A luz torna-se ela mesma fonte de vida. Mas é gradual. A fé, deixando-se iluminar por essa luz suave, tem de atravessar as sombras da vida, apesar do medo, da vergonha, da natural confusão sentida nestes tempos novos. A experiência da Páscoa é deixar que a fé, mesmo com muitas perguntas, seja atravessada pela luz, em especial, neste tempo novo na humanidade.
Santa Páscoa.