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Cultura, Literatura e Filosofia

RECONSTRUIR A HUMANIDADE, EIS O DEVER

Regina Sardoeira

“Houve até ao dia de hoje, mil fins diferentes, pois houve milhares de povos. O que falta é a corrente unindo essas mil nucas, o que falta é um fim único. A humanidade não tem ainda um fim.
Mas dizei-me, meus irmãos, se a humanidade sofre por lhe faltar um fim, não será o caso que não existe ainda humanidade?”

Friedrich Nietzsche, Assim falava Zaratustra

Tenho revisitado Nietzsche, esse visionário da segunda metade do século XIX, e nunca me pareceram tão oportunas, como agora, as frases dele que me acodem ao pensamento. Procuro-lhes o contexto, no livro, mas percebo logo que é ao tempo actual que devo aplicá-las, pois elas foram escritas para ressoarem pelos séculos fora.
E logo vou em busca da “corrente unindo essas mil nucas”, essa poderosa corrente, criadora da verdadeira unidade dos homens, para lá das fronteiras, das línguas, das crenças, dos costumes, dos valores.
A humanidade tem passado o seu tempo de vida a digladiar-se, a levantar muros e barreiras, a fechar-se nos seus núcleos restritos, a olhar o estrangeiro com desconfiança ou a reverenciá-lo ou a menosprezá-lo, consoante os casos. Faz isto numa grande escala, transforma certos povos em líderes, enquanto escraviza outros e fá-lo, também, ao nível das infraestruturas sociais criando élites, classes, chefes e subordinados, numa insuportável teia de desconfiança, abuso, hipocrisia.
E eis que, bruscamente, uma ameaça deflagrou sobre todos os homens, não respeitou hierarquias, lideranças, élites, chefes e subordinados, abrangendo todo o mundo numa mesma e idêntica guerra sem nome. Será, afinal, esta a corrente capaz de unir essas mil nucas de que fala Nietzsche, capaz de converter todos os povos a um único desígnio, criando a humanidade “que sofre por lhe faltar um fim” e que, nessa medida, talvez não exista?
Mas , perguntarão, era necessário que a conversão da humanidade à sua verdadeira natureza se apresentasse sob esta forma, tinha que ser um vírus, poderoso e contagiante, o veículo e o passo necessários para compreendermos quem somos?
Sim, tinha. Milhares de indícios correm por aí há muito tempo. Se reflectirmos um pouco teremos deles uma percepção absoluta.
Observemos imagens próximas do caos absoluto das nossas cidades, por onde transitam milhares de veículos, uma multidão de homens e mulheres atarefados, e as construções despersonalizados onde nos vamos recolhendo ao fim do dia, e o fumo de muitas combustões e o ruído álacre de muitas vozes dissonantes e os rios e mares empestados e multidões alienadas em deambulação contínua numa busca do prazer que não encontram e o ar viciado que nos encharca a pele e os restaurantes e cafés onde ingerimos iguarias suspeitas e os sítios obscuros onde procuramos alívio de males do espírito que, afinal, não existe enquanto alívio…
Observemos tudo isto e muito mais que aos poucos tornou a nossa condição de humanos um escárnio, um insulto à natureza de onde viemos. E depois pensemos: não era urgente que tudo, por fim, terminasse?
A Bíblia refere, no livro do Génesis, um dilúvio, ordenado por Deus para extinguir a humanidade. Ele tinha-a criado há pouco tempo, juntamente com uma morada adequada e as plantas e os animais, tudo o que, segundo a sapiência divina, lhe era necessário para que crescesse, frutificando, em obras valiosas, a inteligência que também lhe foi dada. Mas o homem não foi fiel a si próprio, deturpou e conspurcou o mundo à volta de si e dentro de si, traindo a sua finalidade. E o criador, desiludido com aquilo que considerou ser a sua obra prima, vendo a criatura num desdém absoluto face aos tesouros de que dispunha, não encontrou outra solução a não ser destruir a sua obra. Mas, querendo afinal salvar os homens que, por outro lado, desejava extinguir, procurou um justo, no âmago de tanta devassidão e encontrou Noé, deu-lhe instruções exactas para que ele pudesse refazer a obra de que tanto se orgulhava, como Deus que era, ordenou para a Terra uma grande tempestade de chuvas ininterruptas, durante quarenta dias, extinguindo a raça iníqua. Na arca sobreviveram Noé e a família e um par animal de cada espécie; e, quando, por fim, as águas baixaram, uma nova oportunidade foi dada ao homem para construir, outra vez, a humanidade.
Este acontecimento narrado nesse livro que, durante séculos e até ao dia de , foi considerado o repositório da suprema ciência, mas que pode, igualmente, ser analisado como uma metáfora, atinge-nos, a todos, nesta hora.
Uma outra forma de dilúvio paira no nosso horizonte e assombra os nossos dias: seremos salvos, como foi Noé ou estaremos condenados, como todos os outros? Haverá terra firme depois da tempestade e poderemos respirar e erguer um novo mundo ou não seremos nunca visitados pela pomba branca com o ramo de oliveira no bico? Foi Deus que criou o vírus e o inseminou no primeiro infectado, sabendo que, a uma enorme velocidade, a violenta necessidade de transpor, continuamente, mundos e oceanos, o levaria, num ápice, para todo o lado? E afinal quem é esse Deus que, ancestralmente, destruiu toda a humanidade, deixando uma promessa, e agora a destrói, uma vez mais, porque esses homens renascidos, com Noé, lograram uma e muitas vezes o seu desígnio? Esse Deus é um vingador, afinal, um déspota que não aceita, no fundo, o livre-arbítrio que outorgou à sua criatura? Esse Deus, desistente dos homens, está, de facto, morto e outras entidades poderosas assumiram o seu papel, querendo ser Noés, para moldar o mundo à sua imagem? Ou não haverá qualquer Noé ou qualquer Deus e uma onda diabólica, oriunda da própria perversão do homem veio, agora, à revelia de si, instaurar a ordem de que estamos todos carentes?
São questões terríveis, estas, bem o sei. Mas são as necessárias, num tempo em que o sentido corpóreo, físico e íntimo da humanidade que somos, se tornou no primeiro obstáculo à manutenção da humanidade. Somos compelidos, por ordem superior, mas também pelo instinto da sobrevivência, a guardar distância dos outros, a evitar a comunicação, pelo gesto afectuoso da proximidade; e precisamos de tapar o nosso rosto e falar por debaixo da máscara, para que o sopro da nossa respiração não contamine os outros e vice-versa. Não sabemos se ou quando esta condenação nos será levantada; mas temos, ainda, um requisito connosco, mantemos o discernimento, não fomos privados dos sentidos, a inteligência racional continua a ser a nossa marca distintiva…de que estamos à espera para partirmos à descoberta?
É necessário unir as mil nucas dos mil povos, construindo a corrente que falta. É necessário encontrarmos o patamar da nossa condição comum e percebemos que temos uma só força, um só desígnio, um só destino.
Não são os decretos dos políticos, ou os acordos e consensos mundiais, ou as grandes assembleias de decisores, ou os senhores do poder e as suas miseráveis potências que precisamos ouvir e respeitar, baixando a cerviz. Temos que ouvir-nos a nós, individualmente encerrados por detrás das nossas paredes, ouvir-nos, bem no fundo da humanidade que já nos havia escapado, e perceber, depois, que temos a chave da solução do enigma, proposto por Nietzsche, no final do texto em epígrafe. Porque em todos os cantos do mundo, por detrás de cada parede, a inteligência racional de que somos dotados, concluiu, afinal, exactamente o mesmo que nós. Se assim não for esta humanidade que reclamamos não merece, efectivamente, existir.

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