Regina Sardoeira
Vivemos um tempo inédito. Insólito. Inacreditável. Insuportável quanto baste. E contudo, à nossa volta, nossa, de humanos, a natureza expande -se em floração inebriante, em luxurioso verde, em avanços e recuos de sol esplendoroso e chuva torrencial, porque é deste teor e primavera. Os pássaros, variados e jovens, saltitam por entre os ramos e gorjeiam ou volitam em bandos, numa errância plena de graciosidade e é toda uma aventura vital a acontecer à frente de todos aqueles que ainda são capazes de ver.
Dentro de portas, lido também eu com o milagre da vida, se o é, enquanto milagre, pois no acabrunhamento colectivo do mundo de agora, parece mesmo que, quando a natureza se revela, salubre e vigorosa, ao revés da nossa melancolia, nela participaram forças transcendentes. E se lido com essa irrupção vital é porque acolhi, da rua , uma gatinha grávida, acompanhei-lhe os dois meses de gestação e vi, uma manhã, com que sabedoria ela escolheu o refúgio, abrigado e quente, para dar à luz, e o modo delicado , diria eu, com que veio ter comigo para me conduzir ao sítio onde, ciosamente, guardava as suas crias. Cinco. Limpos, quase brilhantes, de olhos fechados, mas tacteando acertadamente até ao leite da mãe, representaram, para mim, que os recebi como se fossem meus, no dia 23 de Março, a alegria suprema, nesse tempo sombrio em que o mundo silenciava e se guardava cuidadosamente atrás das suas paredes, temeroso de um mal invisível.
Nos primeiros dias, quando eu mesma sentia um desconcerto imenso, perante a ameaça anunciada e propalada em todos os canais e a todas as horas possíveis, bastava-me contemplar aquele grupo de seis, uma família, de facto, deter-me uns minutos na harmonia absoluta de uma união, também ela absoluta, para sentir descer sobre mim um enorme apaziguamento.
Um dia achei que poderia interferir e melhorar as condições que aquela mãe escolheu, para dar à luz e cuidar os seus cinco filhos. Limitei-me a tornar mais aconchegante o “ninho”…fui o mais discreta e rápida que consegui. Mas ela, a mãe, muito ciente das suas competências, levou, de noite, os filhos para outro lado, levou-os, um a um, segurando-os pelo pescoço e recolhendo-os num sítio mais recôndito!
Deixei-os então.
A partir daí assisti, maravilhada, à absoluta dedicação da mãe aos filhos, saindo, escassamente, para necessidades fundamentais e com eles permanecendo horas e horas, alimentando-os, lavando-os, protegendo-os no abrigo do seu corpo. Um dia, vi, extasiada, que os olhos deles começavam a abrir-se, e eram duas fendazinhas minúsculas de um lado e do outro da cabeça,, até se abrirem de todo e começarem a ver o mundo ao redor do si: a mãe, os irmãos e eu, debruçada sobre eles, com um sorriso no rosto, para eles inútil.
Aos poucos, foram-se aventurando para fora do “ninho”, inventaram percursos, subiram e desceram pequenos declives de almofadas, começaram a descobrir-se cada vez melhor uns aos outros e a entreter-se em desajeitadas e incipientes brincadeiras.
Perto deles, para evitar deslocações da mãe para mais longe, eu tinha posto o prato da comida, o recipiente de água e uma caixa de areia. E um dia, ainda não tinham completado um mês, vi-os a comer os pequenos biscoitos secos que ali deixara; depois percebi que sabiam por que razão estava ali uma caixa de areia e vi como souberam, exactamente, utilizá-la. Aos poucos, aventuraram-se para fora do local isolado onde nasceram, foram descobrindo o resto da casa, e eu pude observar, nos seus olhos e atitudes, o espanto, o medo, a desconfiança, a curiosidade.
A mãe nunca os perde de vista e, a horas certas, quando o corpo lhe fala da necessidade de amamentar, emite uns miados muito específicos, um chamamento. Um após outro, eles acorrem e ficam, alinhados e muito quietos, a sorver o leite que os cria. De repente, o tempo prescrito para o acto termina e ela, ora adormece com eles, ora sai, bruscamente , deixando-os enrolados uns nos outros.
Aprenderam a correr, trepam, primeiro desajeitados e depois cada vez mais destros, fazem correrias loucas, simulam lutas e ataques, inventam presas…a natureza selvagem explode nestes pequenos seres plenos de vitalidade.
Uma noite desapareceram. Os cinco. Apreensiva, procurei-os por toda a casa, fui aos sítios óbvios e a seguir aos inverosímeis. Andei meia hora nesta azáfama, sabendo que não tinham modo de sair para o exterior , crendo-me vítima de uma cilada estranha. Fui seguida pela gata-mãe, também ela em manifesta ansiedade. Vi-a, por fim, sentada, perto da porta da entrada e tinha, no rosto, uma expressão inequívoca de dor e de angústia.
Convenci-me que teriam adormecido profundamente num canto qualquer e esperei. Foi então que começaram a aparecer, primeiro um, depois outro e por fim todos , os cinco, estremunhados, a esticar as pernas e logo em desenfreada correria, perante os miados zangados da mãe, que os queria junto dela, sossegados e obedientes.
Observo todas estas cenas, assisto, deslumbrada, à crescente autonomia e saber-fazer destes pequenos animais e não resisto a compará-los connosco, humanidade. Vejo que, contrariamente a nós, eles trazem consigo a perfeição, e o seu desenvolvimento é harmonioso, sem quebras, voltado para a autonomia plena, quando a mãe os desmamar e depois deixar de conhecê-los como filhos. E logo a seguir, penso em nós, humanos, numa dependência consentida e desejada por anos e anos, dependência de filhos para pais, de pais para filhos, de todos para todos, numa menoridade confrangedora . Somos, sem dúvida, os criadores do erro, do limite, da imperfeição, do esforço, relativo e consequencialista, das nossas vidas pouco satisfatórias. Engendramos a fealdade e o vício, a insensatez, a corrupção, a mentira. Somos animais degenerados, seres da escuridão, arremedos da vida. Que admira que sejamos assombrados e manietados por um vírus? Que admira que múltiplas catástrofes estejam perfiladas no nosso horizonte miserável?
Chamo milagre ao fenómeno que irrompeu aqui, dentro das minhas paredes, num tempo de clausura auto-imposta, mas também superiormente decretada, porque este acontecimento é o indício de que à nossa volta, e não somente aqui, a perfeição e o absoluto são as regras da vida.