Isabel Madureira
“se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.”
Na situação atual que o mundo atravessa, lembrei-me incessantemente do livro de Saramago, Ensaio sobre a Cegueira. Li-o aquando da sua publicação, em 1995. Adorei. Talvez tenha sido o livro do autor que mais gostei de ler. Depois vi o filme. Adequado, pareceu-me, no entanto continuo a achar que o livro é soberbamente melhor.
E agora? Abril, Maio, de 2020? Nunca o livro me pareceu mais atual. Fui à prateleira relê-lo. O entusiasmo é o mesmo de sempre. Soberbo! Espero que nunca se chegue à quarentena relatada naquele manicómio horrível…
A partir de uma súbita e inexplicável epidemia de cegueira, o autor conduz-nos a uma desorganização total que acontece à medida que todos vão ficando cegos. Esta desorganização vai transformando as personagens em animais egoístas, capazes de tudo, lutando pela sobrevivência.
O início do livro é desesperadamente assustador. De repente ouve-se o grito de uma personagem “ Estou cego”. É a partir deste grito desconcertado que os acontecimentos nos são apresentados à velocidade da luz. Num ápice, todos os habitantes daquela cidade ficam contaminados. Todos? Não. Há uma personagem que não se deixa contaminar, curiosamente, uma mulher, a mulher do médico. É através dos seus olhos que todos os cegos são conduzidos.
A determinada altura, deparo-me com a questão. E se todos cegássemos? Sim, e se todos cegássemos. O mundo sofreria uma mudança radical e todos os valores que pautam a nossa conduta seriam questionados, porque lutaríamos por uma sobrevivência em que a solidariedade humana seria posta de lado.
Por ordem do governo, os cegos são levados para um manicómio desativado, para estarem em quarentena. Ninguém sabia o tempo que iria durar este isolamento social. Duas alas, uma onde eram depositados os cegos e outra onde eram colocados todos os que ainda viam, mas tinham contactado com cegos. À medida que iam cegando, eram postos na ala dos outros. De repente, todos estão cegos e o horror começa. O instinto de
sobrevivência toma conta dos personagens onde a lei do mais forte prevalece. O desejo comum é satisfazer a fome e os prazeres inimagináveis numa situação daquelas.
O que mais me vem à memória é o lixo aí acumulado, a escuridão, a falta de higiene, a falta de comida, a violência e a total ausência de valores.
Através deste livro, Saramago obriga-nos a parar, fechar os olhos e ver. E tal como ele disse numa entrevista “ Este é um livro francamente terrível com o qual eu quero que o leitor sofra tanto como eu sofri ao escrevê-lo. Nele se descreve a longa tortura. É um livro brutal e violento e é simultaneamente uma das experiências mais dolorosas da minha vida. São 300 páginas de constante aflição” (Ensaio sobre a Cegueira ou o sofrimento de Saramago, Jornal O Bancário).