Regina Sardoeira
Escrevo ao pôr-do-sol e reparo que nada mudou na fogueira do céu, que o ar continua benéfico, morno, salubre, que os montes continuam sendo as linhas quebradas de sempre, que o breve trinado das aves já se esvai na copa das árvores e dificilmente absorvo a onda de inquietação que tanto perturba a humanidade.
Vivemos numa catarata confusa de desespero e ânsia, não sabemos o que somos, de facto, de onde viemos, para onde caminhamos. E nenhum ser do Universo, por mais infimo ou gigantesco que seja, tem a menor das nossas preocupações.
Desistimos há muito de viver, fruindo o tempo e o espaço, inventámos uma civilização, construímos uma cultura – logo nos tornámos produtos dessas construções nossas, numa inextrincável dialéctica, num absurdo ciclo vicioso.
Começámos a perceber, há pouco tempo e à escala global, que individual e colectivamente, somos absolutamente programados, comandados à distância e até pelas nossas próprias mãos, num torvelinho gigantesco de que não somos capazes de fugir. Creio que a maioria de nós viu, finalmente, quão ilusório e fútil era, afinal, o conjunto dos nossos estilos de vida. Mas para chegar aí, foi necessário que aqueles que nos dirigem, desencadeassem um surto epidémico, espalhassem o terror, engendrando fobias e pânicos de todos os tipos. Depois, em nome da nossa saúde e sobrevivência, fecharam-nos em casa, afastaram-nos dos outros, fizeram com que evitássemos a proximidade, o aperto de mão, o gesto fraterno, e olhássemos com desconfiança e temor todos aqueles que antes sentávamos de bom grado à nossa mesa.
Dizem-nos que assim deve ser para não sermos apanhados pelas garras do inimigo assustador, apesar de invisível. E eis que o inimigo é, afinal, qualquer um de nós, em passeio displicente por um jardim, em lazer tranquilo numa esplanada de praia, em trânsito habitual pelas ruas da cidade. Dizem-nos: Protege-te! e Fica em casa! porque onde menos esperas acoita-se o inimigo que pode ser o teu irmão, pai ou amigo!
A maioria obedece e deixa-se ficar, a coberto da sombra. Outros rompem o cerco e vão à procura de si, no mundo que conheciam. Só que ele não está lá, doravante, e ei-los que regressam, cabisbaixos, remetidos ao isolamento que não querem.
O homem e um ser complexo, biopsicossocial, e estas três componentes conflituam entre si. Seres da natureza e logo bios, afastamo-nos, lentamente do nosso estado original, criando um ambiente artificial que nos foi moldando lentamente, retirando-nos qualidades admiráveis. Seres de grande complexidade cerebral, desenvolvemos comportamentos específicos, tortuosos, patológicos, com os quais vamos dilapidando a nossa natureza. Seres gregários por excelência, juntamo-nos em famílias e clãs, criámos gigantescas urbes onde nos acotovelamos, gerando as condições excelentes para a quezília, para a desconfiança, para a guerra.
Que admira que um certo vírus muito poderoso e altamente disseminante tenha vindo do âmago de não sei que oculta génese para, objectiva e intencionalmente, nos fazer parar e, desse modo, levar-nos a uma inversão da nossa humanidade? A natureza é inteligente, tem os seus meios pelos quais vai ridicularizando as tentativas humanas de manipulação e domínio: acabará por encontrar modos de calar a nossa empáfia. Para já, retiraram-nos a expressividade facial, obrigam-nos ao distanciamento, limitam-nos os movimentos. São manobras humanas, apenas, porque o poder deste fim do dia que me acompanhou a escrita, há-de sobrepor-se à malícia, para nos conduzir à harmonia universal.