Regina Sardoeira
Não me parece que Seara do Vento seja um livro propagandístico, literalmente. Julgo que essa conotação advém da interpretação ou, decerto, do preconceito.
Não pensemos no tempo cronológico do qual faz história o livro de Manuel da Fonseca; pensemos no mundo de hoje.
Parece existir um abismo entre essas duas realidades; parece que, hoje, a desigualdade social, a pobreza extrema, a fome, a solidão (…) estão absolutamente arredadas; e que a isso se chama “progresso”. Mas, escavemos um pouco mais, desloquemo-nos até ao fundo da condição humana, da condição humana portuguesa, para circunscrevermos a observação. E o estigma da desigualdade social, da pobreza extrema, da fome, da solidão (…) continuam aqui, como marca e sinal deste nosso esclarecido século XXI.
Em “Seara do Vento”, o país estava obscurecido e travado na sua evolução pela matriz ditatorial do salazarismo sendo óbvio para a maioria que quem mandava eram “eles” e que opor-se-lhes era sofrer ainda mais miséria, ainda mais condenação Os gérmenes de uma luta libertadora andavam por ali e por aqui – o Alentejo, pelo carácter extremo da sua paisagem e do seu rigor climatérico (e é preciso ter vivido e trabalhado ali por algum tempo, para levantar a ponta do véu do que é realmente o Alentejo) tem todas as condições para engendrar tipos humanos dramáticos, dramáticas condições de vida e dramáticos acontecimentos. Aliás, ir viver para o Alentejo, vindo do Norte, por exemplo, sem qualquer preparação é aceder a um choque, levar a cabo uma aventura e pode ser a vivência de um drama.
Diziam-me que só ficava ali, vindo de fora, quem lá arribasse por um grande amor. E mesmo assim, os primeiros tempos eram árduos e puxavam lágrimas e desesperos frequentes. E é por essa razão que o Alentejo é a primeira personagem de qualquer romance, novela, conto ou poema (…) quando alguém, que conhece o território de raiz, porque a ele pertence, decide escrever uma história com semelhante protagonista.
Quando vivi no Alentejo, não me lembro de ventanias ou temporais. Mas lembro-me das estevas e do seu fulgor límpido e alvo a dar aos montes uma conotação insólita de neve. Quando vivi no Alentejo, não testemunhei pobrezas extremas em casebres arruinados. Mas vivi de perto o estigma do abandono presente nas crianças, vivendo como que numa espécie de ghetto territorial, dos mais velhos, querendo fugir dali, mas não sabendo como – um jovem dos seus vinte anos disse-me que a vida dele se assemelhava ao trânsito continuado numa rotunda – e dos adolescentes, ciosos da sua terra e desconfiados de quem, espontânea e frontalmente, lhes falava de certos defeitos observados ou anunciados da sua vila, refugiando-se numa atitude hostil, difícil de romper.
Ora, como a minha experiência alentejana foi levada a cabo em 2003 e 2004, posso entender o chamado realismo ou neo-realismo de Manuel da Fonseca, apesar de tudo enredado em múltiplas metáforas, e, recuando no tempo, compreendo todas as linhas do episódio narrado em Seara do Vento.
O caráter elíptico de certas personagens – julgo que a figura de Mariana é apenas um esboço, o sinal de uma realidade maior por detrás dela mas a necessitar seriamente de ser ocultado (não podemos esquecer-nos que o livro é de 1958 e, nesse tempo, os escritores precisavam de esconder-se em simbologias para evitar o lápis da censura, não o conseguindo de todo, e apesar disso) e a própria Amanda Carrusca precisa de ser adivinhada no ápice das suas contradições (um misto de conformismo e raiva, de amor e de ódio, de vontade de salvar e de matar) – não desvirtua o romance, porque ainda que factos reais (não um apenas, mas muitos) possam estar na génese da narrativa, aquelas figuras fantasmáticas – o Palma, o Bento, a Júlia (…) – são paradigmas da miséria e do abandono.
Não vejo nem sombra de propaganda comunista neste romance, nem vestígios de uma declarada alusão à luta de classes ou às leituras necessárias de Marx, Engels e Lenine. O que eu sinto é a realidade – se bem que, repito, esta realidade, para ser conotada simplesmente de realismo, surja eivada de uma linguagem metafórica – uma realidade presente naquele e no nosso tempo em que só foi alterado o sentido do “eles é que mandam” e, mais terrível ainda: no nosso tempo desapareceram as Marianas, como archote de uma esperança que não temos.
E é por essa razão que ler Manuel da Fonseca e a Seara de Vento pode gerar uma antinomia interpretativa: por um lado, é todo um mundo que se desfaz, com heroísmo de um lado (ou desespero?): por outro é uma luz que se fortalece na tomada de consciência do povo embrutecido perante o testemunho de uma luta desigual.
E Amanda Carrusca? Essa, não percebemos muito bem se terá sido abatida pelos tiros imediatos, se terá, pura e simplesmente, subido aos céus, qual fantasma esfarrapado ou se terá vingado para ser a narradora, por fim liberta do estrangulamento da indecisão.
É simbólico ainda o facto de terem sido salvos apenas dois daquela família de condenados: a jovem Mariana, com uma sabedoria teórica à espera do sinal para concretizar-se e o Bento, pobre doente de não sei quantas maleitas. De novo a antítese dialéctica presente nesta dupla: a esperança de um mundo equilibrado e justo, racional e livre, mas também a doença, a imbecilidade e muitas dependências.
O escritor, se o é, traz nos seus textos profecias e vislumbres que podem escapar aos contemporâneos e permanecer obscuros aos que se lhe seguem, mas revelar-se-ão a quem partilhar com ele a condição. Seara de Vento revela ao leitor a absoluta miséria de uma família que não se resume à fome de alimento físico mas a muitas outras fomes. Uma família de seres fantasmáticos que, ou não se falam ou não se entendem no que falam. Traz ao leitor uma outra miséria: a dos valores, ausentes da classe dominante e dos seus sequazes – sejam forças de autoridade, seja a igreja – cujo benefício reside na manutenção da ignorância e da fome que precipita o homem em todos os abismos possíveis. Traz ao leitor a desigualdade das lutas e a aniquilação dos que não têm nada a perder: e a imbecilidade da testemunha acoitada nas ruínas, como sinal de irreversível declínio.
Por não haver nesta obra pares românticos e desajustes casamenteiros
à Camilo Castelo Branco, chamamos-lhe realismo (ou neo-realismo) e apodamo-lo de propagandístico? E se o for: acaso os homens de hoje não necessitarão de uma forte sacudidela, na sua cegueira pusilânime, tanto mais ameaçadora quando surgiu depois de haverem sido limpas as crostas dos olhos de Bento por uma Mariana, ciente do seu papel, morta a mãe, perdido o pai? De que serviu, afinal, limpar as remelas e erguer bandeiras, se, após a aurora libertadora, permitimos que uma espécie de civilização às avessas nos soldasse crostas impiedosas aos olhos que cremos lúcidos e nos impedem de ver o caminho? Quanto às Marianas…se existem, ou não foram ainda capazes de despertar, entretidas na futilidade ou, tão só escrutinem uma réstia de verdade, logo lhes será vedado o passo. E ninguém as seguirá.
Sendo assim, a metáfora neo-realista de Manuel da Fonseca, essa seara com ventos uivantes e barrancos desajustados numa terra de planície, esse deserto ponteado de estevas que apenas quem as vê florir, nos repentes da Primavera, pode entender-lhes o sortilégio, esses homens e mulheres quase despojados da mais chã das humanidades e contudo veementes na sua luta pela dignidade é um livro perene que, a ser lido hoje, verdadeiramente, sem apodos ou datações arbitrários, pode limpar a escória de tantos olhares vidrados em ilusões ou intumescidos por incúria da verdadeira função de ver.