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Cultura, Literatura e Filosofia

A PROPÓSITO DE CRÓNICAS

Soni Esteves

Quando me convidaram a assinar uma crónica na BIRD Magazine, dei por mim a lembrar-me de um episódio que envolvia um desafio do género, lançado aos meus alunos do nono ano, que os obrigava entregar-me, no final de cada mês, o resultado das suas impressões sobre um acontecimento, ou ocorrência pessoal marcante.

Capacidade de escrita à parte, cada um tem a que tem, e uns cultivam-na mais do que outros, sobravam as temáticas, cujas escolhas não diferiam muito. Afinal, todos viam as mesmas séries, as mesmas telenovelas ficcionadas ou em tempo real, jogavam ou viam os mesmos jogos, até as notícias referidas eram aquelas que a comunicação social se encarregava de repetir à exaustão, até que delas o último português se inteirasse. Enfim, a vida deles acontecia sem surpresas e isso era refletido, a cada mês, em cada crónica. Certo era que, do alto dos seus catorze ou quinze anos, todos manifestavam, com reivindicada propriedade, uma opinião, com maior ou menor azedume, com mais ou menos melaço, mas quase sempre despida de originalidade.

Porém, naquele puzzle de conformidade, havia uma peça que não encaixava, o Eduardo! A sua escrita era tão imprevisível quanto a sua participação na aula. Tinha fama de mandrião, o ar descontraído do rebelde sem causa e não mostrava, que se percebesse, afinidades especiais dentro da turma. Acontece que as suas crónicas eram diferentes, deixavam escapar uma ironia fina, um certo sentido de humor e uma linguagem carregada de autenticidade. Lembro-me especialmente da primeira, que discorria sobre um jantar que ele e o irmão mais novo haviam preparado para a família, em certo domingo. Tratava-se de um simples cachorro, “Cachorro à moda do cego”.  O tema era banal, a escrita simples, mas havia nela uma sonoridade e um ritmo quase excessivos, e era tão imagética que quase senti o sabor daquele cachorro. Inicialmente, julguei que a escolha do tema denunciasse falta de interesse pelos acontecimentos do mundo, mas depois, vendo-o discorrer sobre a última vitória no campeonato de Fórmula 1, referir-se às vitórias do Niki Lauda como se falasse de um parente próximo, ou falar sobre o lançamento de certo modelo automóvel, percebi que nos seus textos residiam, afinal, as suas afinidades, a sua personalidade, a sua voz.

Acabou o ano, ele mudou de escola e deixei de o ver. Entretanto terão passado dois anos, mas há dias, estando eu a passear o meu cão perto de um campo de jogos, vi um grupo de rapazes a jogar futebol com alegria ruidosa de quem aproveita os primeiros dias de desconfinamento. Da baliza ecoou uma voz “Olá, stora, tudo bem”? Reconheci-o de imediato. Sem deixar de lado o jogo, com um olho em mim, outro na bola que rodava no meio campo, disse ainda “Um dia destes mando-lhe uma crónica”!

Não o fará, mas o facto de o ter pensado e dito, foi mais uma janela aberta no meu próprio desconfinamento.

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