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Cidadania e Sociedade

CHEGÁMOS MUITO MAIS LONGE DO QUE IMAGINÁVAMOS!

Ana Josefa

Sempre tive dificuldade em recusar desafios, mas este foi-me apresentado como algo irrecusável, como um dever. Fui apanhada de surpresa, como toda a gente. Nunca tinha sido convocada para uma tarefa oficial a um sábado e muito menos para começar a trabalhar numa Sexta-feira Santa. O Covid-19 tinha-me trazido um presente embrulhado num papel ilustrado onde se lia “ESTUDO EM CASA” e teria de dizer adeus aos planos que tinha para as interrupções da Páscoa, mesmo em confinamento.

Aulas 1, 2 e 3: Crianças no mundo.

A sensação de que tudo era para ontem e que estávamos numa corrida a alta velocidade contra o tempo foi de facto assustadora, principalmente até às primeiras gravações. O instinto de sobrevivência mais uma vez ia ser posto à prova e disse para mim mesma: “Vamos sobreviver a isto!” e de facto sobrevivemos e aqui estou eu para contar a história com a sensação de dever cumprido.

A Ciberescola foi convidada para assegurar as aulas de Português Língua Não Materna e na sequência disso, eu e a colega Sara Mourato fomos escolhidas para representar a nossa equipa. Todo o nosso trabalho foi coordenado pela colega Ana Sousa Martins. Foi um trabalho árduo, mas a equipa arregaçou as mangas e embarcou neste desafio do Estudo em Casa com um espírito de missão.

Para quem não sabe, a Ciberescola consiste num serviço prestado por um pequeno núcleo de professores especializados em PLNM, que leciona, desde 2011, a alunos estrangeiros recém-chegados ao sistema de ensino público português, ao abrigo de protocolo com a DGE-ME. Tratando-se quase sempre de um número residual de alunos presentes em cada AE, o ensino é feito por videoconferência, sendo que, numa mesma sessão, é possível agregar alunos de vários AE (neste momento, 10). Os alunos dispõem, como manual de trabalho, de um grande acervo de materiais disponíveis gratuitamente em www.ciberescola.com. Estes materiais são originalmente produzidos pelos professores da equipa.

Aulas 4, 5, 6 e 7: Histórias de desenhos animados, sinopses de filmes. cinema.

Eu comecei a trabalhar com a Ciberescola no ano letivo 2018-2019, quando propus que os alunos do meu agrupamento (Agrupamento de Escolas Vale da Amoreira) integrassem este projeto e no presente ano letivo passei a fazer parte da equipa.

Depois deste parêntesis para esclarecer o que é a Ciberescola, voltemos à nossa história do Estudo em Casa.

Após a reunião geral realizada a 6 de abril, presidida pela DGE, por videoconferência, com cerca de uma centena de pessoas envolvidas neste projeto, tomei consciência dos vários constrangimentos que poderiam dificultar a minha prestação, nomeadamente a inexperiência em lidar com as câmaras, a impossibilidade de repetir as gravações caso houvesse enganos, a ausência física dos alunos, a incerteza de se conseguir chegar até eles, enfim… e ainda outras questões menores como por exemplo o que vestir.

Foi-nos dito que seria fácil a lecionação nestas condições e que deveríamos ter uma atitude natural como numa aula normal, mas todo este ambiente apresentava-se um pouco intimidatório e não parecia ter nada de normal para além dos conteúdos que teríamos de lecionar.

E assim começou a maratona. Andávamos a contrarrelógio. Tinha que gravar trinta aulas! Essas trinta aulas de meia hora correspondiam a um número incontável de horas de trabalho invisível da equipa na preparação dos guiões e dos materiais para cada aula. (Graças ao feriado do Corpo de Deus tive um bónus e gravei apenas vinte e nove.)

Aulas 8 e 9: As quatro estações de Vivaldi; Ludwig van Beethoven; Aulas 10, 11, 12, 13, 14, 15: Animais variados, cães, gatos, animais resgatados, mãe-galinha.

Nas primeiras aulas sentia-me muito insegura, apesar das longas horas de preparação e treino com um cronómetro em frente e com a colega Ana Paula Gonçalves do outro lado do computador em videoconferência ou com as minhas  filhas a dar dicas do género  “Aqui podias fazer assim ou fazer assado para parecer mais natural, ou para ser mais cativante”, “Tens que controlar melhor o tempo!”, “Tens que falar mais devagar!”, “Tens que te lembrar que os alunos têm que ter algum tempo para responder às perguntas….  Tens… tens…tens…” Enfim nem vos conto a ansiedade e o stress.

Posso dizer que depois da gravação das duas primeiras aulas, em que tremia que nem varas verdes, comecei a controlar melhor toda esta ansiedade.

A forma calorosa como fui recebida pela equipa da Fremantle e a curiosidade que demonstraram em saber o que se iria ensinar nas aulas de PLNM, uma disciplina da qual nunca tinham ouvido falar, deixou-me um pouco mais à vontade e menos receosa. Tudo fizeram para que o ambiente fosse descontraído e a pouco e pouco nos fôssemos sentindo “em casa”.

Aulas 16, 17, 18, 19: Segurança rodoviária, cidades sem carros: cidades e florestas.

As idas para a RTP eram tensas, mas o regresso a casa era descontraído, apesar do elevado número de vezes que os agentes de autoridade me mandaram parar à entrada da Ponte 25 de Abril para saber o motivo da minha deslocação a Lisboa, pois nessa altura, a nossa mobilidade estava condicionada.

Quando a primeira aula foi emitida no dia 20 de abril, eu já tinha gravado quatro aulas sem ter a menor noção do resultado final de cada uma delas, o que quer dizer que as incorreções ou os aspetos menos positivos dessas quatro aulas só poderiam ser corrigidos ou melhorados a partir da quinta aula. Na verdade, quando vi a primeira aula, reparei numa montanha de questões que deveriam ser melhoradas e mesmo assim, pensei “Correu melhor do que aquilo que eu esperava!”.

Daqui para a frente fomos introduzindo alterações sobretudo ao nível dos suportes materiais usados nas aulas, seguindo novas orientações ao nível do tamanho das letras e das cores, para que os slides apresentados fossem mais legíveis.

Aulas 20, 21, 22, 23: A água e a falta dela; a praga do plástico; Imperador maluco; Peixe explosivo.

A partir do segundo dia de gravações, passei a gravar três aulas de cada vez, porque era necessário garantir que havia um número de aulas gravadas suficientes para serem transmitidas semanalmente, pois a minha disciplina ocupava três tempos semanais na grelha do Estudo em Casa. Preparar e treinar para gravar três aulas de cada vez não foi pera doce, mas mais dura ainda era a tarefa de retaguarda de construir os guiões e preparar os materiais para cinco aulas semanais – sim, cinco aulas semanais, porque para além das minhas aulas de PLNM Iniciação, havia ainda as aulas de PLNM Intermédio que eram transmitidas duas vezes por semana. O entusiasmo e o compromisso da equipa de trabalho foi fundamental para que conseguíssemos superar este desafio com sucesso. A semana mais dura para todos foi aquela em que gravei cinco aulas, mas sobrevivemos.

Aulas 24, 25 e 26: Urso pescador; Carl Sagan.

Ao longo das vinte e nove aulas que lecionei, procurámos abordar temas variados e que, para além de tratar conteúdos específicos da língua portuguesa, pudessem ir ao encontro do interesse dos alunos, quer pela sua utilidade no quotidiano, quer pela curiosidade que poderia despertar, quer ainda pela possibilidade de ativar o sentido crítico e a consciência cidadã dos nossos alunos, alunos esses que afinal nem sabíamos bem quem eram. Sabíamos apenas que o nosso público-alvo abrangia essencialmente alunos com línguas maternas diferentes do português e com uma faixa etária muito alargada, do 1º ao 9ºano de escolaridade. Foi sempre nossa preocupação que as aulas fossem apelativas e cativantes e deixassem os alunos curiosos em relação ao que iria ser tratado na aula seguinte. Estamos cientes que nem todos os alunos aproveitaram as aulas da mesma maneira, mas procurámos diversificar os recursos, utilizando vídeos e imagens que nos poderiam ajudar a transmitir a mensagem de forma a ser entendida por um maior número possível de alunos.

Desde a transmissão televisiva da primeira aula fomos recebendo algum retorno de quem acompanhava as nossas aulas.

Recebi muitos telefonemas e mensagens de colegas, amigos, familiares e conhecidos com palavras de incentivo e de apoio que foram alimentando o meu ego e que me davam mais motivação para as gravações das aulas seguintes. Fui contactada por pessoas com quem não falava há vários anos para me dizerem que estavam a acompanhar as aulas do Estudo em Casa e apreciavam bastante as aulas. Fui surpreendida com contactos de pessoas que nos estavam a acompanhar em França, na Suíça, no Luxemburgo e no Reino Unido. As nossas aulas de PLNM estavam a ser acompanhadas também por emigrantes lusófonos e pelos seus filhos. Fiquei de coração cheio quando recebi telefonemas de Cabo Verde, do local onde nasci, a felicitar-me pelo meu trabalho, mas sobretudo por ficar a saber  que as pessoas que têm televisão em casa reúnem as crianças das redondezas para acompanhar as aulas do Estudo em Casa, não apenas as minhas aulas, mas também as outras que são transmitidas na RTP África. Chegámos muito mais longe do que imaginávamos!

Aulas 27, 28 e 29: Richard Feynman; As mulheres e o desporto; Vanessa Fernandes.

Também fiquei a saber que o nosso público vai muito além dos alunos com outras línguas maternas. No dia em que fui gravar a minha quinta aula, recebi um telefonema da D. Emília, uma jovem sénior que deixou de ir à escola há mais de sessenta anos, que me felicitou e me disse que acompanhava as aulas todos os dias e que até já tinha um caderno onde ia registando as coisas novas que aprendia nas aulas. Também me relataram que em alguns lares de idosos, à hora do Jornal das 13h, mudavam de canal, para a RTP Memória, porque as nossas aulas eram bem mais atrativas e interessantes do que as notícias que a toda a hora davam conta das desgraças.

Fui surpreendida algumas vezes no supermercado por crianças e jovens que me reconheciam, apesar de eu estar a usar máscara, para me dizerem que assistem sempre às minhas aulas e que gostam muito de assistir a elas, porque os temas eram interessantes e gostavam dos vídeos. De notar que os alunos em causa eram falantes nativos de português e à partida não teriam de assistir a estas aulas.

A verdade é que efetivamente as pessoas acompanharam atentamente as nossas aulas e até se referiam a alguns pormenores de determinadas aulas. Um senhor que me telefonou de Cabo Verde disse que tinha gostado imenso daquela aula do autocarro que estava cheio de plantas. No supermercado, um senhor chamou-me e disse: “Oh menina, eu ontem vi a aula dos ouriços que queriam atravessar a estrada!” Uma colega referiu que assistia às aulas com o filho e que não sabia que os cucos não faziam o seu próprio ninho e que colocavam os seus ovos nos ninhos dos outros pássaros. Enfim, muitos outros exemplos poderiam ser aqui relatados.

Participação no programa Preço Certo – Especial Professores do #EstudoEmCasa

Há também aqueles telespetadores super especiais, como os meus pais, que veem as minhas aulas na RTP Memória e depois veem a repetição na RTP África.

A minha participação no projeto Estudo em Casa foi muito gratificante. Foi sobretudo uma oportunidade de aprendizagem e de crescimento profissional. Encarei o desafio como um dever e dei o meu contributo para esta iniciativa que considero muito nobre. Estou consciente que nem tudo foi perfeito, mas o balanço é muito positivo. Agora que estava pronta para começar, acabou!

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