Bru Junça
Em Sábado de Aleluia com as mãos na massa, literalmente, entre tender bolos fintos amassados com ervas doces e estender folhados recheados de doce de gila, recebo um telefonema – urgente. Um convite, inesperado. O qual, requereu rápida resposta. Directa. Um Sim ou Não. Sem tempo para lançar pensamentos ao ar. A disponibilidade imediata para construir a Hora da Leitura do 1º e 2º anos de escolaridade do Estudo em Casa. Pedi um dia para pensar. Deram-me uma noite. E no Domingo de Páscoa, de pés assentes na terra, consciente do tamanho do desafio, surge a fé. Em querer e crer que a resposta era a certa. A única, possível: Sim! As minhas incertezas e inseguranças eram um segundo plano diante de um plano bem maior. O “Mundo travou a fundo”. As medidas exigiam, e exigem, excepção, celeridade, humanização e confiança. Estamos todos na mesma margem. Ainda que à deriva, de muitas certezas.

As condições de liberdade na escolha das obras e que, na Hora da Leitura, “apenas” lesse(mos) foram aceites. Em três dias delineei 10 sessões. Em confinamento, longe de grande parte da minha biblioteca pessoal, foi necessário um trabalho de pesquisa que me ofereceu bonitos (re)encontros. Literários. Relidos “agora” sobre um novo olhar.
As premissas para cada sessão foram: Ler Autores Portugueses (escritores e ilustradores, atendendo a alguns tesouros um tanto ou quanto esquecidos) e procurar dar voz a pequenas Editoras Portuguesas especializadas em Livro Infantil; uma presença forte da Figura Humana, procurando aqui um espelho vs reflexo para quem estava do outro lado e, claro, contemplar o Plano Nacional de Leitura.
Na primeira sessão, o nervosismo foi enorme. Sentia um paradoxo, ler num espaço vazio para muitos. Faltava-me o olho no olho. O estar do outro. Os silêncios que separam as leituras e tecem, também eles, a narrativa do que se lê e se escuta. O que se constrói, entre o livro e a simbiose leitor-ouvidor. O tempo passou lentamente. O cronómetro não batia às horas certas com o meu tempo interior. Nem com o tempo de quem escuta. Tive que improvisar. Sem espaço para edição ou um “corta” que me desse a possibilidade de fazer de novo. Recorri ao mais fiel. Aos textos que me chegaram envoltos em afecto, em algum momento da minha vida. A história Bolacha Maria de António Torrado foi-me oferecida pela Professora Leonor Riscado e, para sempre, será docemente saboreada a cada leitura. No final, os técnicos de som e de imagem perguntaram-me: “Que livros são estes, professora? São diferentes!”. Ao que eu respondi: São bons livros. Ponto. E este é um grande ponto, de partida. Para chegada.

Num trabalho de relojoeiro procurei afinar-me com passos mais certos à escuta, direccionando os ponteiros ao “outro”. Partilhei diversas obras literárias. Clássicos contemporâneos, grandes referências actuais e atemporais.. De vários tipos. Desde o livro, aos tipos de texto bem como às propostas de narrativa. Abri o caderno “Ler Para Nada ou Atirar para o Ar”. Poderoso manancial da Tradição Oral Portuguesa. No fundo, o primeiro livro ao qual temos acesso. Chega-nos pela voz de quem nos embala. No berço. No colo. E, atrevo-me a dizer, vida fora. As lengalengas, os trava-línguas, os ensalmos, as canções de embalar e as adivinhas são ou é importante que sejam, e a mim foram-me, as primeiras leituras… Estes textos alicerçam-se e ganham sentido(s) na voz. Dar-lhes existência no gerúndio, num dos verbos mais vitais: Brincar. “Brincar é a mais divertida das coisas sérias” como tão sabiamente escreve Eugénio Roda. Quis dar tempo de antena a este maravilhoso ofício da criança que a faz apre(e)nder o mundo experimentando-o. Aqui, em brincadeiras com a Língua Mãe.

Do outro lado, estavam famílias. Soube-o desde o primeiro instante, E, naturalmente, a existência de uma enorme diversidade. Seria difícil chegar a todos. Nunca chegamos. Mas parti da certeza, e numa espécie de dever missionário daquilo em que acredito, que um bom livro é para todos. Busquei, em cada sessão, uma espiral. Aberta à vontade e disponibilidade de cada um, em a percorrer ou não.

As gafes, aconteceram. Delas não me orgulho. Mas naquele estúdio, tal como na vida, não podíamos passar uma borracha. Apenas tomar consciência e procurar, na próxima, não repetir erros. Lembrar o sítio certo para olhar. Não esquecer da posição das mãos. Virar o livro para a câmera certa. Não descurar o tempo. Não tapar o microfone e fazer o trabalho o melhor possível. Tentando alcançar o impossível. Reiterei aqui, mais uma vez, que a Palavra tem um imenso poder. Dita, fica escrita.

Foram-me dias intensos. Estranhos por toda a conjuntura. E de viagens, longas. Em quilómetros. Nas quais, tinha de levar comigo, dentro do bolso, uma declaração que me autorizava a passagem para a outra margem. Ancorei-me à metáfora. E segui caminho. Procurando leituras e outras novas margens. Outras.
De toda esta experiência guardo emoções, e Gente. Sobretudo. Em estúdio, durante uma gravação, marcou-me quando ouvi um dos Câmeras sussurrar a um colega: “É agora aquela parte que eu gosto!”. Fitei a orelha e quando comecei a Atirar para o Ar “Copo copo copo jericopo…” senti que Ler para Nada é um laço que permite conjugar o verbo estar, no plural. Fora de estúdio, foram muitos os encontros. Sublinho alguns, a neta da escritora Maria Cecília Correia que se espantou com uma edição autoral de “Histórias da Minha Rua”. Um dos meus tesouros. A jovem mãe que, aos seus quatro anos de idade, disse a frase que deu origem ao mais recente título do Cancioneiro Infanto-Juvenil para a Língua Portuguesa – “A Poesia é uma Coisa Que Não É A Mesma Coisa Mas É Igual”. Foi procurada recentemente, sem sucesso e encontrada, por acaso, ao assistir com a filha à Hora da Leitura. O escritor António Mota que me fez recordar quanto afecto pode guardar uma velha lata azul de bolachas. E memórias. De quem nos é vida fora. Uma bonita mensagem de alguém que ao ouvir “(…) a história não está na história (…)” de Mário Castrim recordou-se do colo do seu avô, a assistirem ao programa Tal&Qual. Juntos. As mensagens que recebi, devo dizer, e agradecer profundamente, envoltas em carinho e apreço pelo trabalho realizado, por parte de grandes e pequenos, deram-me alguma possibilidade de análise. E de reforçar que, de facto, a leitura e o livro SÃO, sem “para(s)”.

Quero agradecer à equipa da RTP pelo acolhimento mas sobretudo pelo riso, o espanto e a curiosidade. Foi importante sentir que havia ouvidos em estúdio. Uma reacção vital à acção de quem se dirige ao outro procurando a proximidade.
Ao Colégio Corte Real, responsável pelas aulas do 1º e 2º anos de escolaridade, escrevo fincadamente um abraço colectivo. Por todo o imenso trabalho invisível, mas tão substancial para que tudo acontecesse. No ecrã. Construído em conjunto numa corrida contra o tempo. Muitas horas. Muito suor. Mas onde vigorou o profissionalismo e a confiança. Ambos assentes num vínculo de união.

Aos intérpretes de Língua Gestual com os quais tínha de articular trabalho e sei que nem sempre era fácil traduzir os textos propostos. Nunca foi um público esquecido, de todo. A cada sessão havia um ou dois livros seleccionados criteriosamente para ir ao encontro, o melhor possível.

E por fim, sempre em na linha da frente, aos Autores a minha eterna gratidão por nos rasgarem mundo a cada leitura. Por tão bem saberem inventar soluções possíveis para os nossos impossíveis. Por semearem poesia. No olhar. Na vida. E serem pontes tão resistentes, capazes de nos proporcionarem travessias incríveis. Nós adentro. E com, ou para, o outro.
A leitura em voz alta, alimento como pão quando comungada. A Palavra sabe ajudar a fintar a vida com Ervas Doces.