Joana Benzinho
Há sempre uma primeira vez para tudo. E naquele dia conseguimos um “Hat-trick” na história de uma criança a quem a vida teumava em roubar oportunidades.
Acantonado num hospital com uma doença chata mas não letal, o menino de que vos vou falar esperava uma oportunidade de sair da Guiné-Bissau num qualquer programa de evacuação internacional para resolução de um problema tão facilmente solucionavel no mundo ocidental, mas que no seu país o mantém acamado e com dores terríveis cada vez que dá um passo
Vamos chamar-lhe Abel para dar um rosto à história. Todos os dias nos via chegar no jipe e pedia a sorrir para dar um passeio. Até que chegou a manhã em que o desafiámos a sentar-se no banco traseiro e a seguir viagem. Aceitou sem hesitar e apesar da dificuldade lá entrou decidido. A estrada esventrada pela chuva de agosto e pela falta de manutenção tornava a viagem num mar de sensações para este menino que pela primeira vez vez entrava num meio de transporte onde não ia acotovelado por dezenas de outros passageiros nas tradicionais carrinhas que amontoam pessoas e que na Guiné-Bissau se chamam “toca-toca”. De janela aberta dava gritos de alegria, num sorriso rasgado de orelha a orelha que não conseguia fechar nem quando a vergonha de me ver a olhar para ele o fazia baixar os olhos. Depois de uns quilómetros de emoção fomos até à biblioteca que andávamos a montar e o Abel entrou como se sempre ali tivesse estado e agarrou o primeiro livro infantil que viu como se fosse aquela a sua história. Folheou, soletrou letras, afagou os desenhos com os seus dedos pequeninos. Perguntei-lhe se gostava de livros de histórias. Respondeu que gostava de ler mas aquele era o primeiro livro infantil que via. Sorri sem chão e disse-lhe para escolher uns livros que podia levar de volta à cama da enfermaria. Demorou-se na escolha, enquanto devorava outros tantos e partiu com as histórias debaixo do braço para o almoço que lhe tínhamos prometido. Depois de muita hesitação, pensámos que nada melhor que uma Pizza com um refresco para alegrar o dia. Ingenuidade a nossa. Ou falta de tato… a pizza era completamente indiferente ao paladar de quem pouco conhece da vida ou da gastronomia do mundo moderno. Sentado pela primeira vez no restaurante, olhou admirado para uma lista em que podia escolher várias coisas e, perante tanta fartura encolheu os ombros. Não sabia o que dizer, parecia ter perdido a fome. Não queria nada. Talvez por querer tudo. Pedi-lhe um bife com batata frita e arroz. O prato chegou e os olhos brilharam. E os meus humedeceram ao ver o seu deslumbramento. Comeu demorado e deliciado cada pedacinho de bife, cada bago de arroz, cada batata frita. Bebia o refresco que pediu como se fosse um verdadeiro nectar dos deuses. Deixou metade do bife no prato. Apesar de ser notório que estava a comer com o maior dos apetites. Perguntou por fim, com o rosto envergonhado se podia levar o resto num oleado (saco de plástico) para dar a um amigo.
Engoli em seco, respirei fundo para não me falhar a voz, e respondi naturalmente que sim. Chorou no regresso à cama que lhe servia de familia, de lar, de vida, de futuro. Queria eternizar-se naquele dia que me disse ter sido tão feliz. Não foi o único a regressar a casa de lágrimas nos olhos. Neste “hat-trick”, em que num mesmo dia eve três novas experiências tão distintas, o Abel deixou-me com o desconforto na alma de sentir que vivemos realidades tão distintas que por vezes o mais importante se torna invisível aos olhos.