Regina Sardoeira
Cumpre-se Agosto. Pelo ar pairam exalações de um mundo antigo, tão antigo que se perde na bruma do tempo e de que conseguimos, apenas, supor vislumbres do que seja o viço primitivo. Não quereríamos, decerto, essa pujante frescura de um planeta quase virgem porque, ao longo do tempo, o nosso cérebro alterou-se, mercê dos sucessivos avanços civilazicionais e não saberia integrar-se e subsistir na selva inumana. Mas apraz-nos desejar, de vez em quando, esse recuo no tempo e acreditar que aquilo a que chamamos “ar puro”, “natureza” e outros epítetos com que vamos designando fugas das cidades, em carros, comboios, aviões, estão ainda ao nosso alcance.
A nossa humanidade transformou-nos, na medida em que, pela tecnologia, nos ofereceu um mundo construído de materiais tão alterados que pouca semelhança encontrarão na natureza. Tornou-nos subprodutos.
Apesar de tudo, certas emanações, cálidas ou frescas, uma mordida de sol na pele, à beira-mar, um reflexo azul, em água de piscina, uma relva verdejante, em jardim plantado, um rumor de asas pelo crepúsculo fazem estremecer o grão de sensibilidade que nos resta. Mas é somente um grão, não tenhamos ilusões. Se ficássemos “clear” ou esclarecidos, somente do ponto de vista sensorial, acaso os nossos sentidos frouxos aguentariam a explosão do verde absoluto da erva, do vigor absoluto das águas do mar, do esplendor absoluto do sol cálido, do brilho das estrelas, da pungência do crepúsculo?
Platão, na célebre, e talvez não inteiramente compreendida, Alegoria da Caverna, do livro VII de A República, afirma que vivemos todos acorrentados no mundo das sombras, acorrentados e na penumbra, acreditando, firmemente, que os reflexos na parede, à frente dos olhos, são a verdadeira realidade. E contudo, basta que um dos prisioneiros se arraste, contra a vontade (porque, voluntariamente, nunca o faria) para fora da caverna e logo será ofuscado pela força da luz, em pleno. E não conseguirá ver, de imediato, quererá fugir, de tal modo o clarão absoluto da verdade é aterrador, terá que ser compelido a aprender a arte da observação! Verá, em primeiro lugar, os reflexos das coisas, na água, a sua silhueta, à noite, e, depois de um período de aprendizagem, vê-las-á, em si mesmas e ao próprio sol, sua condição de vida.
Ora, tal como os prisioneiros da caverna alegórica, nós estamos todos prisioneiros, condenados a ver sombras. Não porque exista uma parede palpável e correntes a impedirem a fuga, mas porque nos conformámos, nos adaptámos, nos deixámos escravizar. Cremos que este mundo, que nos é diariamente patenteado, é o único, o verdadeiro. Desconhecemos outros territórios, outros poderes, não geográficos ou musculares, mas os que se ocultam à nossa cegueira: porque ver seria, à partida, terrível, talvez excessivo para as nossas forças, avassalador para os nossos sentidos frágeis e comprometidos.
Cumpre-se, pois, Agosto. O ar, escaldante, pede a brisa e ela vem, tardia, com os raios da Lua Cheia. O sol ostenta o seu fervor poderoso, alimentando a Terra. E nós, fiéis às luzes de uma civilização em transe, suspiramos e tememos, alucinados e dormentes, crendo-nos vivos e em segurança, por detrás da cortina (ou da máscara).