Cultura, Literatura e Filosofia

O VÍRUS DE SÍSIFO

Marco Bousende

Na mitologia grega Sísifo foi o fundador e primeiro Rei de Éfira. Era considerado o mais astuto dos mortais. Na sua vida térrea e post mortem foi pródigo na malícia e no enfrentamento dos deuses. Como castigo final, foi condenado para a posterioridade a carregar uma rocha até ao cimo da montanha. Uma vez quase ao chegar ao topo, a rocha rolaria novamente pela encosta até ao vale. De uma forma bastante resumida, o trabalho de Sísifo representa uma tarefa que envolva grandes esforços, repetitivos mas condenados ao fracasso, num ciclo que tem tanto de inútil como de infrutífero, contudo é inevitável.

Miguel Torga deixou Sísifo na sua poesia, Camus em prosa e o genial pintor Tiziano em pintura. Eu proponho-me a uma tarefa mais modesta, de tentar entender este período histórico dominado pelo coronavírus, o qual intitulo de Vírus de Sísifo pelos motivos que de seguida explanarei.

No período de confinamento foi determinado que o serviço Nacional de Saúde concentrasse esforços na abordagem do covid 19. Muitos profissionais de saúde na linha da frente foram sujeitos a grandes esforços e aos perigos de contágio. Os restantes, parte considerável, viram reduzido drasticamente o seu trabalho, não por vontade própria, mas porque assim foi determinado. Os serviços de saúde privados, seguindo as orientações, ficaram também em trabalho residual, excluindo-se aqui os que realizaram testes ao coronavírus e pouco mais. Os doentes com outras patologias ficaram para trás, sendo que as consequências já estão a chegar e agravar-se-ão, o que já se reflete no excesso de mortalidade no último mês a nível nacional, sendo que uma pequena parte é explicada diretamente pelo vírus.

Tal como Sísifo, os profissionais de saúde carregaram a rocha do vírus pela montanha acima, contudo o problema ainda não se resolveu, e a rocha resvalou encosta abaixo crescendo de volume e peso com os doentes das restantes patologias que ficaram para trás. A rocha está maior e é preciso continuar a arrastá-la montanha acima…

Henrique Leitão, historiador da ciência e Prémio Pessoa 2014, refere que quando olhamos para uma determinada descoberta científica do passado, só a podemos entender se a consideramos no seu contexto. Assim, quando nos referimos às façanhas de Da Vinci, Galileu ou Kepler, no fundo estamos a falar de incrementos determinados também por uma evolução no contexto político, económico e social. Mesmo partindo destas considerações, penso que, pelo menos com o fim da Guerra Fria, a ciência foi consolidando de certa forma uma certa independência.

Posto isto, pretendo manifestar a minha angústia em relação ao que se tem passado no momento atual. Por todo o mundo as entidades reguladoras da saúde divergem, fato mais evidente no caso da Organização Mundial de Saúde que diz tudo e o seu contrário, dando cambalhotas e fazendo piruetas que nem o mais audaz ginasta circense ousaria. Até sobre artigos publicados em revistas científicas de enorme prestígio há suspeitas…

Os media seguem a mesma linha, abordando a vasta estatística conforme o país em questão, manipulando descaradamente as notícias conforme o noticiado agrada ou não.

A politização da ciência é um perigo gravíssimo para a própria, e por inerência para a Humanidade.

Outro dos temas dramáticos nesta crise é a economia. Esta travou marcadamente com as medidas adotadas em quase todos os países. Ainda que seja bastante empírico, não é demais relembrar que a pobreza é um dos maiores fatores de risco para a saúde. E ela está aí e inevitavelmente agravar-se-á…

As classes médias / médias baixas terão uma degradação no seu nível de vida e poder de compra. O impulso pavloviano para querer mais estado aumentará, com o consequente aumento da dependência em relação ao mesmo. Esta perda de independência conduzirá inevitavelmente a uma perda de livre arbítrio e de espírito crítico, erodindo as democracias e fortalecendo as ditaduras.

Um pouco por todo o mundo os governos declararam estados de exceção para lidar com a situação de saúde pública, algo à partida razoável. O problema foi o que se passou a seguir, um pouco por todo o lado. Vários países alteraram leis sensíveis, fizeram negócios obscuros, forjaram as estatísticas da saúde ou reforçaram os seus poderes nos média. Os novos inquisidores do politicamente correto, sejam eles estatais ou grandes colossos mundiais das redes sociais, aproveitaram para apertar ainda mais o garrote sobre a liberdade de expressão. Os eventos culturais e as manifestações passaram a ser escolhidas conforme a ideologia do cliente. A democracia enfraqueceu.

Neste paradigma atual do coronavírus, que eu apelido de Vírus de Sísifo pelos motivos referidos, há pelo menos duas grandes diferenças em relação ao mito original.

Em primeiro lugar Sísifo sofreu o castigo de carregar a rocha até ao cume da montanha pelo seu comportamento errático. Resta saber porque é que nós recebemos este castigo. Veio o vírus da natureza sem responsabilidade humana? O homem teve responsabilidade por negligência? Foi premeditado por interesses que não conhecemos? As questões tem de ser colocadas, esperando-se que sejam respondidas por investigações sérias, honestas e independentes, feitas por técnicos devidamente credenciados.

A segunda grande diferença do coronavírus em relação ao mito do Sísifo é que ao contrário do segundo que foi condenado para a eternidade, nós felizmente ultrapassaremos esta situação.

Mas a Humanidade perderá, direta e indiretamente, milhões dos seus. Ficará mais pobre e amedrontada, menos livre e democrática.

A VIDA NÃO TEM PREÇO. A LIBERDADE TAMBÉM NÃO.

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