Ana Carla Ferreira

Tudo começou num qualquer dia de abril, em plena quarentena devido à COVID-19, durante uma reunião geral de professores do meu agrupamento de escolas e na qual o desafio nos foi apresentado pelo nosso diretor como um privilégio (entre tantas instituições de ensino no país, nós fomos escolhidos) e como uma missão ao serviço de Portugal: tinha chegado a hora dos professores mostrarem que, como muitos outros profissionais que estavam na linha da frente a combater o malfadado vírus, também eram capazes… Foi assim anunciado o início desta aventura, um “tal” de #EstudoEmCasa!

A novidade e a responsabilidade deixaram-nos a todos perplexos e apreensivos: as informações iniciais eram vagas, o projeto surgiu de um dia para o outro (coisas da pandemia) e as dúvidas sobre como tudo iria processar-se eram mais do que muitas! Entretanto e enquanto aguardávamos a segunda reunião (esta já com a presença da Direção Geral de Educação e da RTP Memória), começamos de imediato a organizar o trabalho colaborativo na própria escola e o primeiro passo foi sermos integrados em equipas de acordo com o ano letivo que teríamos de lecionar nas aulas da TV.

Para mim, chegava então a primeira dor de cabeça – era eu a coordenadora da equipa que ia assegurar as aulas de Português do 9º ano e, soube depois, seria eu a dar a cara, em nome dessa equipa, como pivô de tão “assustadoras” aulas (eu… que inicialmente ainda pensei que nos fossem dizer que os professores das escolas envolvidas no projeto teriam de preparar as aulas em conjunto com a equipa da DGE mas que o trabalho de pivô seria realizado por profissionais de comunicação… Enfim, pura ingenuidade…).

A reunião com a equipa da DGE e da RTP Memória apaziguou algumas das inquietações mas também originou novas ansiedades: as aulas na TV começariam no dia 20 de abril porque era premente assegurar o ensino à distância a todos os alunos do país – o projeto era de inclusão e direcionado em particular para os alunos que não tinham meios informáticos ao seu dispor – ou seja, tínhamos uma semana para preparar duas aulas até à primeira gravação nos estúdios da RTP;

a gravação das aulas teria de ser o mais célere possível, sem direito a cortes, ensaios ou segundas oportunidades – sem rede, sem tempo, sem teleponto, sem apoio técnico especializado para a elaboração/passagem dos recursos digitais, sem dicas para a colocação de voz, sem formação para olhar para as câmaras, sem direito a maquilhagem ou a qualquer orientação para o guarda-roupa (perdoem estas duas últimas referências, mas além de professora sou mulher e claro que a imagem a transmitir era mais uma preocupação), sem…; as disciplinas que foram atribuídas à minha equipa e confirmadas durante esta reunião foram o Português do 9º ano, a Escrita e a Literatura para o 3º ciclo, demasiadas aulas para preparar e quatro blocos pedagógicos semanais na TV!

Pensamos logo que seria impossível, aliás as restantes equipas tinham a seu cargo apenas uma disciplina!!!! Após a reunião, a equipa da DGE ouviu as nossas preces e acabou por nos atribuir só o Português do 9º ano e as outras duas disciplinas a outra escola (primeiro grande problema ultrapassado).

Terminada a reunião geral com a DGE e a RTP Memória, começou o trabalho feito sempre em contra-relógio quer com a equipa da escola, quer com a equipa de Português da DGE. A equipa da escola (Agrupamento de Escolas Fernando Casimiro Pereira da Silva em Rio Maior) reunia uma vez por semana em regime presencial e num curto espaço de tempo preparou seis aulas “prontas” para gravação mas dessas seis, aproveitamos apenas duas (novo obstáculo) porque afinal já não se iriam realizar as provas de final de ciclo para os alunos do 9º ano, nem de Português nem de Matemática e as orientações para a seleção dos conteúdos a lecionar na TV sofreram alterações e tivemos que reformular praticamente tudo de um momento para o outro.

Era este o nosso quotidiano diário, enfrentar e ultrapassar situações de última hora e ter capacidade de resposta imediata porque no #EstudoEmCasa, como no país e no mundo, o que agora era “verdade” daqui a pouco poderia não ser, contingências da pandemia. Com a equipa da DGE estávamos em contacto permanente e, muitas das vezes, sem hora marcada porque sempre que existiam dúvidas, a equipa estava lá para nós. Como refere o lema do meu agrupamento de escolas “Sozinhos vamos mais rápido mas juntos vamos mais longe” e foi mesmo esse o sentimento experienciado, sozinha jamais teria conseguido e estas “minhas” duas equipas foram o motor que fez a engrenagem funcionar. Ficar-lhes-ei eternamente grata pelos ensinamentos, pelas partilhas e pelas cumplicidades vividas.

Aos poucos e a medo, o caminho foi-se delineando e construindo e eis que chegou o grande dia, a gravação das duas primeiras aulas (no total gravei 19) nos estúdios da RTP e com o apoio da equipa da Fremantle (mais uma equipa fantástica que fez os possíveis para que o nosso desconforto fosse ultrapassado, situação que não era nada fácil).

Primeiro foi o reconhecimento do estúdio de gravação, dos recursos que poderíamos utilizar, das duas câmaras que teríamos de enfrentar, do relógio que teríamos de controlar (os 30m que nos davam para cada aula tinham de ser exatos), das luzes projetadas sobre nós, da visualização prévia dos materiais digitais construídos e descarregados na “pen” e que lá eram passados para o computador da produção para que as falhas fossem menores (o que nem sempre aconteceu porque como numa sala de aula aqui também surgiram imprevistos), dos minutos em contagem decrescente ao som do genérico que marcaria o início da primeira gravação e depois, sem intervalo e apenas com tempo para beber água, iniciar a segunda.

Duas aulas gravadas em modo automático porque no fim das gravações quando me perguntavam se tinha gostado, se tinha corrido bem, se estava convicta da validade científica dos conteúdos lecionados… eu não sabia o que responder, aliás nem sabia o que tinha dito, nem se me tinha esquecido de algo, na minha cabeça apenas e só um frustrante vazio e uma enorme vontade de chorar. Eu não tinha mesmo noção do que tinha feito e não podíamos ver antecipadamente as gravações, veríamos quando os outros, quando as aulas fossem para o ar! Sendo assim, a frustração e o medo da reação do público ir-se-ia prolongar e com uma agravante, eu estava consciente que a minha primeira aula ia para o ar no primeiro dia de emissão do #EstudoEmCasa, dia em que todo um país (os alunos por necessidade e o público em geral por curiosidade) ia ter os olhos colados ao televisor, ou seja, tudo a ajudar… Embora no fim da gravação destas duas aulas iniciais me tivessem acalmado e explicado que estava tudo bem, que não tinha de estar apreensiva, que o discurso tinha sido coerente, que a imagem era segura, que a colocação de voz era estimulante, que não houve falhas científicas (não há palavras para agradecer estes estímulos! Muito obrigada às colegas de Inglês do 9º ano que me acompanharam nesta luta e a todos os intérpretes de Língua Gestual Portuguesa com quem tive a honra de trabalhar) … eu precisava ver para crer! No dia 20 de abril de 2020, quando a primeira aula foi para o ar, enchi-me de coragem e coloquei-me em frente ao televisor a pensar que depois de ver, seria ainda maior a frustração e a vergonha, tais eram as baixas expetativas e, talvez por isso, depois de ver consegui acalmar, não tinha sido tão mau como eu imaginava e a linguagem utilizada era de facto clara, segura e coerente… mas acreditem ou não, durante o tempo de gravações, lembro que foram 19, esta ansiedade manteve-se. A pressão era imensa, não tínhamos alunos em estúdio e tínhamos noção que ao sairmos do anonimato poderíamos ser alvo das mais diversas criticas. Foram dias de loucura e com os níveis de adrenalina em constante subida. Foram desbravados “mares nunca dantes navegados”, que jamais pusemos a hipótese de navegar e que de repente tivemos de descobrir.

“Valeu a pena?” Claro que sim, “Tudo vale a pena. Se a alma não é pequena.” E a alma de todos os que aceitamos este desafio foi enorme. Fomos chamados para servir o nosso país e ajudar a massa humana que nos move, os alunos. Todos demos o nosso melhor, todos tivemos falhas, todos sabemos que houve pormenores que poderiam ter sido mais eficazes, todos sabemos que o ser humano é um eterno descontente e a classe docente, em particular, é das mais exigentes em relação ao seu desempenho profissional… Mas agora que a missão terminou, penso que podemos afirmar que a experiência foi enriquecedora e que todos os que estivemos envolvidos neste projeto saímos com dignidade e com a consciência tranquila.

Para finalizar, relembrar apenas uma velha máxima “dos fracos não reza a história”, por isso há que saber enfrentar e ultrapassar os medos, só assim podemos evoluir pessoal e profissionalmente. Desafio terminado, orgulho no trabalho desenvolvido e pronta para novas “viagens”… Hoje e sempre pelos alunos do meu país!