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Cultura, Literatura e Filosofia

O DISTÚRBIO BORDERLINE E A PSICOSE DO HUMANO

Regina Sardoeira

Ontem, pela noite dentro, dei comigo a escutar um testemunho, gravado em áudio, de um indivíduo diagnosticado com o disturbio psiquiátrico designado como borderline.

Trata – se de uma pessoa genial, maior de sessenta anos, extremamente dotado para a criação artística a vários níveis. Exímio projectista, licenciado em arquitectura, concebeu edifícios extraordinários, cuja realização prática careceu, invariavelmente, de oportunidade. Viajante, em périplo alucinante pelo país vizinho, na busca de activação de si próprio nos Meninos de Deus, encontrou-se e perdeu-se muitas vezes. Renegada a arquitectura, enveredou pela pintura, realizando e expondo quadros de intensa beleza. Sempre em busca do cordão umbilical, rompido no acto de nascer, e do útero da sua segurança, envolveu-se militantemente com a Igreja Católica, onde descobriu e se tefugiou no envolvimento atento e sábio da mãe e do pai espirituais. Experimentou o benefício da oração quotidiana e contínua nos rituais católicos, no coro litúrgico, onde cultivou a voz . Tornou-se cantor a solo e executante reconhecido de guitarra.

Perdido na vida, desde a infância, o abrigo da mãe, que não soube ou não pôde ser o regaço terno de que foi pertinaz carente, buscou ajuda médica, assaltado por crises de ansiedade e mudanças bruscas de humor, desde a excitação temível à incapacidade de resolver as necessidades básicas mais ordinárias. A psiquiatria diagnosticou-lhe o distúrbio borderline, ensinou-lhe a causa básica e essencial da sua incapacidade de ser um humano normal, percebeu nele a falta profunda de um útero perene, capaz de o envolver num manto de olvido. Vê a vida de dentro para dentro de si, numa introspecção profunda até aos mais íntimos arcanos do eu.

Fala para si próprio, de dentro de si próprio, num solipsismo absoluto onde só os iniciados lograrão pisar um leve patamar. Para os não-iniciados, o seu verbo, consistente e sólido, mas absolutamente hermético, soa a uma qualquer língua ancestral ou ainda a vir, e remete-o mais para o fundo.

Ouvi-o durante uma hora e, naquele discurso pausado e bem articulado, vi uma invulgar aceitação da sua excentricidade, na linha de fronteira que, ao longo da vida, desenhou entre si e o mundo.

Nas suas palavras, plenas de um certo humor e de algumas gargalhadas, evoca a fotografia infantil tirada à porta de casa, onde está espelhada, desde logo, a ânsia de outro mundo, muito seu, incompatível mesmo com a(s) figura (s) tutelar(es) que, do outro lado, apontavam a câmara. E também a memória das viagens de carro, em que se sentava no banco de trás, no meio dos dois irmãos, sentindo vividamente que não era aquele o seu lugar.

A criança, abandonada, ainda que no seio quente de uma família convencional, persiste e resiste no homem de sessenta anos, incapaz de crescer. Persiste e resiste na necessidade de psiquiatras, nutricionistas, pai e mãe espirituais, escala bem ordenada de rituais de sobrevivência diários, cuja quebra lhe provoca incidentes de ansiedade temível.

Vi, no discurso deste homem, que a vida pôs à margem, por não poder comportar tanto excesso, a lucidez de que é carente toda a humanidade.

Ele assumiu o distúrbio borderline, enquanto patologia a resolver na consulta psiquiátrica; mas consegue discorrer sobre a sua condição com lucidez e bonomia. Não é, por isso, um louco na justa medida em que é capaz de centrar a sua personalidade nesse nível e saber de que precisa para seguir em frente. Talvez queira, ainda, resolver o distúrbio e encontrar-te na área dos inúmeros talentos que possui.

A restante humanidade, pelo contrário, ignora o seu narcisismo, o culto absoluto do eu, o solipsismo disfarçado em situações ambíguas de partilha e de grupo. A restante humanidade é toda ela borderline, ou seja, os homens vivem na fronteira de si mesmos, vegetam nas áreas limítrofes da sua própria realidade de humanos – e chamam, ufanamente, a um tal comportamento, a vida, a existência.

O homem que escutei esta madrugada reconhece a sua condição, enovelada em camadas profusas de si próprio, nas fugas e nos regressos, na contemplação e no silêncio, no jogo de espelhos sem fim em que vai sorvendo o seu quociente de vida: um grão de movimento, uma poeira de lucidez, um frémito de respiração, um toque no abismo, uma chegada aos cumes. Os outros homens, todos esses que se dirigem, quotidianamente, para os seus empregos respeitáveis e constroem famílias, mergulham igualmente nas mesmas águas, tumultuosas e baças, e depois transparentes e calmas – mas não têm clarividência que chegue para o assumirem em pleno.
Depois de ouvir aquela meditação, feita discurso organizado e coerente, eu soube que mais vale ser um genial borderline capaz de discorrer sobre a própria condição e caminhar em frente, do que enfileirar na multidão, à cotovelada, e nada conhecer, afinal, de si mesmo.

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