Regina Sardoeira
“Vivemos uma nova realidade, um novo normal!” – proclamam todos os arautos. E seguem-nos, obedientemente, os cidadãos individuais, aderindo a uma subserviência destituída de nexo.
“É necessário seguir as regras, as instruções, sob pena de restrições severas!” – bradam os chefes, seguidos pelas multidões que, temendo pela vida, receosas quanto às sanções, se apressam a obedecer.
É o verdadeiro apocalipse. Um tremendo alarmismo. Uma onda gigante de pavor, pronto a engolir a sanidade colectiva.
As pessoas recolhem-se. Afivelam a máscara e olham umas para as outras, de baixo para meio, temetosamente.
Depois de um primeiro pânico, do qual, efectivamente, nunca saíram pois, com laivos de ritualismo, as notícias quotidianas encarregaram-se de exibir números de novos infectados, números de mortos, números, números, números…ora em crescendo, ora em ritmo decrescente, mas sempre ali, visíveis e impactantes, cedo começou a ser anunciada a “nova vaga”. Alegadamente, ela aí está, com um novo séquito de números, uma avalanche de regras, novas e velhas, um convite a permanecer em casa, no conforto seguro das quatro paredes e a continur a ouvir, somente, as notícias e os números.
Criou-se, pois, um novo paradigma existencial e sanitário. E esta palavra “sanitário”, associada à realidade existencial do homem de hoje, não deixa de ser sintomática.
Somos muitos ,talvez demasiados. Apinhamo-nos nos transportes públicos, nas ruas , nos cafés, nos bares, nas praias. Formamos multidões para assistir a espectáculos, a jogos, para visitar cidades, monumentos, museus. Nunca conseguimos ter um espaço confortável à nossa volta, estamos sempre rodeados de outras pessoas. E de hálitos, de suor, de emanações várias. E de muito ruído.
As pessoas falam, em geral, demasiado alto e mantêm a televisão ligada e a música, como presença indispensável, para onde quer que vão. Já ninguém consegue estar sozinho e em silêncio, em contemplação de si mesmo: querem os outros, ali ao lado, e as vozes, os sons, os ruídos.
Então, as medidas sanitárias, propaladas diariamente desde há seus meses, mostraram ao mundo que é necessário estar a sós. Mostraram que o vizinho do lado pode ser o inimigo que depressa nos contaminará. Apelaram a um hábito que, sendo banal, talvez estivesse a ser descurado, e disseram: “Lava as mãos!” Decerto não as lavávamos tanto quanto era preciso, esquecíamo-nos de o fazer ao chegar a casa, não usávamos nesse gesto muita circunspecção.
E os cumprimentos? Beijos e abraços a esmo, um hábito tornado comum nos últimos anos, do qual não havia escapatória. “Nem conheço aquela pessoa, não me agrada o ar da outra…mas fica mal não as beijar ou abraçar…” e aprendemos a fugir de vagos conhecidos, a virar a cara para outro lado para não ter que abraçar e beijar.
Era assim. Banalizou-se o beijo, dilapidou-se o abraço, distribuídos ambos sem qualquer critério. Pois bem: as medidas sanitárias, impostas à nossa existência, ditaram o fim do abraço, do beijo e até do aperto de mão! Doravante é um “Olá” “Bom dia” ‘Boa tarde” ou um toque ridículo de cotovelos, até se descobrir que, afinal, o vírus passa para o outro, também por esse lado!
Conclui-se que o ser humano estava a resvalar perigosamente para a promiscuidade, que tantos ajuntamentos e multidões e troca de fluidos eram deletérios, que urgia separar o espaço de um do espaço do outro e garantir a higiene. Porque a crise humana é, afinal, a falta de espaço pessoal, a preservação dos metros quadrados necessários a cada um para o usufruto da sua energia pessoal. A crise humana é, por fim, uma questão de ar puro, respirado a sós, por detrás de um rectângulo de pano pendurado nas orelhas.
Creio absolutamente que estas regras sanitárias vão persistir e tornar-se o nosso quotidiano durante muito tempo. Creio que o futuro nos ensinará a frequentar apenas espaços salubres, onde se possa respirar individualmente, a evitar os sítios do palavreado estulto e dos espectáculos dispensáveis, a honrar com o abraço ou o beijo somente os amigos dilectos a quem confiaríamos a própria vida.
Dizer, com total certeza, se o mundo a chegar vai ser melhor ou pior do que aquele que ficou, não será possível, por enquanto. A visão geral e englobante de tudo o que está a passar-se, no plano colectivo e individual, não poderá ser feita agora, a não ser especulando e tecendo uma manta de retalhos de hipóteses. Um dia, a história juntará as peças todas, organizá-las-á numa narrativa coesa e as gerações futuras compreender-se-ão a partir desse passado que é, hoje, o nosso presente.