Soni Esteves
Há uma estrela d’alva no meu amanhecer, e o céu é hoje um concerto de cores, com nuvens dolentes a vestirem as formas da incerteza, numa sinfonia outonal. Longe das revoadas que fizeram, ainda há tão pouco tempo, primavera, o voo de uma ave, rumo ao sul, risca o mesmo céu. E, numa espécie de acorde perfeito, o seu canto solitário carrega a memória muito antiga de outras viagens.
Passa tão depressa o tempo, neste Tempo maior que faz a eternidade, que eu sinto aqui a minha brevidade. E, talvez em defesa da minha pequenez, espreito um certo carreiro de formigas que espio desde quando o verão era ainda uma promessa. É antiga essa mania de ficar ensimesmada no meu espanto, a ver as formigas irromperam de algum recôndito lugar, para se atirarem num frenético movimento a fazerem caminho, com a determinação de quem sabe exatamente aonde ir.
Um dia destes, depois de ter perdido o meu olhar pelo monte de “comida” que ia desaparecendo para dentro do formigueiro, ao perceber que a azáfama de há pouco tempo ia diminuindo, dei-me conta de que nada sabia das formigas. À memória ocorreu-me, então, a velha fábula, a cigarra e a formiga, de que, de resto, eu não gosto, por nada fazer da beleza daquele coro quente que nos ensina o som do verão. Mas, como não sou partidária do “se não serve, destrua-se”, convivo tão bem com ela, como com os manuais de etiqueta, de Paula Bobone.
Ora, dizia eu, cansada de viver com o nada que sabia sobre estes pequenos seres com fama de trabalhadores incansáveis, resolvi investigar. Fiquei a saber, entre outras coisas, que as formigas surgiram pela primeira vez durante o período Cretáceo, há cerca de 130 milhões de anos e, com exceção da Antártica e do Ártico, existem em todo o planeta, num número impronunciável… A extraordinária organização hierárquica das suas colónias é tão próxima dos filmes de ficção científica (uma rainha, os soldados e as obreiras, cada um concebido para uma função específica e inquestionável), que penso ser impossível alguns não terem aqui bebido inspiração.
Desculpem-me esta deformação profissional, não quero dar lições, até porque esta nem sequer é a minha área e, por certo, já o sabeis, mas eu é que nunca tinha pensado que as formigas, esquecidas da sua insignificância, revolvem diariamente toneladas de terra, garantindo a boa saúde do solo! E nós, que nos habituamos a corrê-las de casa, qual praga, nunca pensamos nelas como importantes disseminadoras de sementes, a par das abelhas e dos pássaros. Enfim, abreviando, crê o mundo científico que se elas desaparecessem, muitos ecossistemas ficariam perigosamente desestabilizados e seriam extintas centenas de milhares de espécies…
Hoje, debaixo deste céu que pouco me diz, ainda, sobre o dia que começa, espio uma vez mais o formigueiro. Uma ou outra formiga adiam, ainda, o momento em que hão de recolher àqueles túneis que se estendem por quilómetros, indiferentes às fronteiras traçadas pelo homem. E eu só consigo pensar que, com tanta lição que as formigas têm para nos dar, Esopo bem que podia ter contado outra história!