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O CENTENÁRIO DO MEU PAI: UMA REFLEXÃO SOBRE O TEMPO

Regina Sardoeira

Percebi, hoje, que não sei o que são 100 anos. Evoco o nascimento do meu pai, a 5 de Outubro de 1920, logo, figura centenária a partir de hoje. E essa súbita quantificação cronológica marca, em geral, de antiguidade, não se aplica a este homem, Luís Sardoeira. Não consigo absorvê-la, de facto, na medida em que ele é presente em mim e atribuir-lhe um século de existência afastá-lo-ia, inevitavelmente. O meu pai que, materialmente, se ausentou daqui há quase trinta anos, está, de facto, absolutamente presente, de muitas maneiras; por isso, a antiguidade secular desta efeméride não corresponde à pessoa concreta de quem nasci.

Luís Sardoeira

Não faço ideia se esta minha incapacidade de atribuir o epíteto de centenário ao meu pai, por sentir a sua proximidade física e temporal, produzirá eco em outras pessoas. Por mim, evoco e celebro o seu aniversário, como tenho feito nos anos anteriores, sem cargas temporais, sem rótulos de antiguidade, como aquela pessoa que guardo em mim e não tem uma idade tangível.

Ao mesmo tempo, nesta mesma data, a República Portuguesa assinala 110 anos, sendo, por essa razão, mais do que centenária. E eu sinto, com inteira lucidez, o carácter antigo desta outra efeméride. Para mim, a implantação da República aconteceu numa data ancestral, de que não fui contemporânea: nada vivi do tempo que a antecedeu, em que os reis pontificavam a dominar o povo. A estranheza desse mundo português, do tempo de D. Manuel II é, em mim, factualmente absoluta e corresponde perfeitamente ao conceito de secularidade. E então 110 anos de República, no que diz respeito a Portugal, é uma idade provecta e longínqua , mas 100 anos de cronologia quando é o meu pai o sujeito a considerar é uma realidade muito diferente.

Estas verificações levaram-me a equacionar a questão do tempo. Existe, objectivamente? É uma estrutura a priori da nossa sensibilidade, tal como pretendeu Kant na Critica da Razão Pura? Não existe, de todo, pontificando como a suprema ilusão humana do calendário e do relógio?

Quando penso em mim, com 10 anos de idade, por exemplo, não me parece que o tempo tenha passado porque sinto uma enorme presença da unidade existencial que me estrutura. Mesmo se olho um retrato antigo, com as diferenças específicas que se vão construindo na arquitectura do rosto, a faísca do eu está lá, insofismável. Tudo é o que já era.

Por esta mesma razão eu sinto e sei que o homem que ontem completaria 100 anos, cujo nascimento se afigura envolto na névoa, não tem a mesma idade que esse outro acontecimento tomado como referência, por ter acontecido no mesmo dia,10 anos mais cedo. A República Portuguesa tem uma distância temporal, na minha perce pção, muito maior que o meu pai. Ele está próximo, tangível, desenha-se com absoluta nitidez; a implantação da República é um acontecimento longínquo, brumoso que apenas me toca por pertencer à história colectiva de Portugal.

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