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Cultura, Literatura e Filosofia

DO OUTRO LADO HÁ COM CERTEZA ALGUÉM

Regina Sardoeira
Não sei o que escrever: é verdade. E no entanto, sento-me e vou correndo o teclado, acreditando que as palavras chegarão, em breve.
Sinto que paira no ar um certo desalento, às vezes, silêncio, outras turbilhonar confuso de um intenso ruído. É isso mesmo: uma sobreposição insolente e absurda de muitas camadas expressivas, de onde não é fácil extrair o nexo.
O homem é um ser da Terra, essencial e profundamente: mas nem sempre parece ter inteira consciência desse facto. Alienado, ao longo dos tempos, criou uma realidade paralela, onde se descaracterizou. O pior foi, exactamente, ter vindo a sobrepôr coordenadas paralelas e não perceber que laborou numa terrível ilusão.
Julgam os homens que há uma fuga qualquer, para lá do horizonte e que basta tapar os olhos e não ver o óbvio para que uma realidade alternativa e indimensionável se abra para recebê-lo. O mais certo, porém, é vir a esbarrar numa parede densa e sentir que, para trás, já não existe terreno algum.
Evoco, neste contexto, e como alegoria ilustrativa, o conto,h “A Viagem”, de Sophia de Mello Breyner.
Um casal sai em viagem, de carro, numa manhã de Setembro, rumo a um local extraordinário, onde nunca tinham estado antes. Nem tão pouco conheciam fosse quem fosse que lá tivesse estado. E contudo, dizia-se que era um lugar maravilhoso!
Os dois foram andando e sentiam uma grande tranquilidade, ao mesmo tempo que usufruíam de toda a beleza do caminho.
A certa altura, saíram do carro, deixaram a estrada, foram em busca de sensações diversas no meio do campo. E o tempo ia passando, o dia alongava-se, pela tarde ainda estival.
Mas quando tentaram regressar ao carro e prosseguir a viagem, na estrada, perceberam que o carro tinha desaparecido.  A seguir desapareceu a estrada e, progressivamente, enquanto o tempo corre para o crepúsculo e para a noite, eles percebem que tudo o que possuíam e tomavam como certo, já não estava lá. Nem carro, nem estrada, nem campo, nem caminho.
Já de noite, absolutamente sós, percebem a verdade. Estão, ambos, numa estreita vereda, com uma enorme e lisa arriba de um lado e o sopro do abismo do outro. Tentam segurar-se, apoiar-se reciprocamente. Mas, primeiro, cai o homem, resvalando para o negrume; e a mulher, suspensa numa plataforma exígua, onde só cabem os próprios pés, sabe que irá a seguir, não lhe acorre à consciência qualquer alternativa. Porém, nessa hora limite, sabendo que cairá inevitavelmente, ela pensa, para além de tudo o nexo racional:  “Do outro lado, há com certeza alguém.” E recomeça a chamar.
Este homem e esta mulher representam toda a humanidade. A sua jornada simboliza a ânsia, tão humana, de sair do seu casulo em demanda de uma certa felicidade: ignota, mas presente, lá para diante, acreditam. Progressivamente, porém,  percebem a caducidade, não somente do sonho que os levou para a frente, mas também do mundo habitual que haviam deixado para trás e ao qual nunca mais poderão regressar.
Este conto magistral de uma escritora, nele revelada plenamente  é a metáfora exacta da vida humana. Não há como fugir à ânsia do seguir em frente, à voragem do desconhecido, à viagem, ao curso do tempo, à inevitável caminhada, rumo a um único sentido. Não há como aprender a inutilidade da viagem, feita fascínio pelo esplendor da chegada, e no entanto nunca experimentada antes. Não há como consultar mapas ou pedir referências, muito menos voltar atrás – porque o veículo não existe, nem a estrada, nem os sítios habituais, tragados pelo tempo. E contudo, na hora derradeira, uma esperança absurda impele ao chamamento pelos que estarão, justamente, “do outro lado”.

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