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Cidadania e Sociedade

ACERCA DO USO DA MÁSCARA FACIAL

Regina Sardoeira
“A máscara facial dá uma falsa sensação de segurança.”
Acabo de ler esta frase num texto que tenta fazer uma análise a uma medida adoptada por muitos países no sentido de  minimizar o contágio do vírus que assola a humanidade.
De facto, a máscara, em si mesma, não impede, absolutamente, a entrada de agentes infecciosos, mas, obviamente, cria uma barreira entre  as pessoas:  quando respiram, falam, tossem, espirram e outros comportamentos comuns na normal convivência. Logo, poderá ter um papel importante quanto à proliferação deste e de outros agentes infecciosos.
Não é por acaso que as equipas médicas, quando se preparam para realizar uma cirurgia, se desinfectam escrupulosamente, tapando também o rosto com uma máscara. O mesmo acontece quando um esteticista executa um tratamento no rosto de um cliente ou um médico dentista se debruça sobre a boca do paciente para tratá-la.
Trata-se, em todos os casos, de medidas profiláticas, tendentes a evitar contaminações, em circunstâncias de vulnerabilidade recíproca: aquele que trata precisa de garantir que não provoca lesões no seu paciente, ao mesmo tempo que se defende a si mesmo.
Creio que, actualmente, esta necessidade de precaução se estendeu à população como um todo, já que em cidades superpovoadas é comum as pessoas terem que disputar o seu lugar na rua, nos transportes públicos, etc. Daí, ser um procedimento sensato proteger-se,  com esse instrumento de resguardo, evitando precipitar sobre outrem resíduos nocivos que podem estar presentes nas nossas vias respiratórias.
Não vejo aí sombra de coacção. Cada um de nós, enquanto indivíduo eminentemente social, tem o dever de agir no intrínseco respeito por si mesmo e por aqueles que o cercam.
Evoco, a propósito, o célebre imperativo categórico da ética kantiana. E que ninguém se apresse a proclamar que, sendo Kant um filósofo do século XVIII e pertencendo nós a este supremo século XXI, estará ultrapassado!
Ora vejamos:
“Age de tal maneira que uses a humanidade , quer na tua pessoa, quer na pessoa de outrem, sempre e exclusivamente como um fim e nunca como um meio.”
Apliquemos este imperativo da acção (e, urge realçar que esta ordem moral emana do próprio indivíduo, na sua racionalidade, não sendo uma imposição exterior) à necessidade actual de usar uma máscara facial em circunstâncias específicas.
A humanidade referida diz respeito a todos e a cada um; e usar a humanidade significa, justamente,  o domínio da relação: connosco mesmos, antes de mais e com as outras pessoas, logo a seguir. O primeiro dever deste “uso” é, então, intrínseco : temos o dever de agir, preservando-nos . Neste caso específico do uso social da máscara, o primeiro requisito é a nossa própria protecção.
Mas a sociabilidade que também nos é imanente, apela, constantemente ao contacto com outrem, “usamos os outros” na interacção social imprescindível. Logo, ao revestirmo-nos de racionalidade na acção, nesta linha de convivência, usar a máscara representa um compromisso social.
Não importa muito o apelo ao respeito pelos outros, neste caso específico. Cada um sabe, ou deveria saber, que, na medida em que todos se protegem, usando a máscara, estão a proteger o todo social com o qual interagem..
O que significa, depois, no âmbito do imperativo categórico kantiano, usar a humanidade, em si e em outrem, sempre como um fim e nunca como um meio?
Muito simplesmente que cada um de nós, independentemente do estatuto social, do género, da idade, é soberano na sua individualidade e no respeito a que tem direito. O respeito é devido de si para si mesmo, no relacionamento íntimo que connosco mesmo estabelecemos e no trânsito social inalienável.
Houve um tempo em que a filosofia kantiana me soou difícil, decerto porque não tive acesso, nos diversos patamares de ensino por que passei, aos professores mais capazes de favorecerem uma perfeita elucidação.  Porém, logo que levei a cabo um esforço individual de análise profunda do modo de pensar do filósofo e, principalmente, quando, ao precisar de o leccionar, me ative às suas repercussões práticas, tudo, em Kant, se tornou absolutamente claro.
Por isso, que ninguém me diga ser esta frase , que é uma ordem – o imperativo categórico –  de difícil compreensão. Pelo contrário, é clara e de muito fácil dilucidação e transposição prática: devo respeito a mim mesmo e aos outros que, em nenhuma circunstância, devem ser instrumentalizados. Mas esta norma de acção é gerada pela minha racionalidade, não sendo proveniente de qualquer coacção exterior.
Vejamos, pois, esta actual obrigatoriedade coerciva de usar uma máscara facial no contacto estabelecido com os outros. Porquê o carácter de imposição com a força de lei e sujeita a sanções, quando infringida?
Creio que há uma falha humana no respeito que é devido a si mesmo e aos outros. Creio que a humanidade não assimilou em pleno o dever de auto-preservação e também de preservação do círculo social a que pertence. E é por isso que os governos devem realizar esta missão. Os homens, esta espécie tão antiga, não atingiram a sua maioridade, têm necessidade de tutelas, precisam de múltiplas autoridades para serem conduzidos ao comportamento razoável.
Que ninguém se revolte, pois, ao perceber que o governo lhe impõe regras : se o foro íntimo dissesse a cada um o que lhe é exigido, por si mesmo, enquanto ser racional, decerto as regras (estas e as outras) não precisariam de impôr-se, de fora.
É evidente, por outro lado, que o uso da máscara, generalizado, não garante, em absoluto, a eficácia plena, no que diz respeito ao contágio. Ao que parece, este é um vírus de origem desconhecida e ainda insuficientemente conhecido quanto ao modo como ataca, à sua agressividade, aos danos que provoca naqueles que o alojaram. Assemelha-se, pelos relatos que nos chegam, que se dissemina a grande velocidade e sabe-se que, como outros vírus, necessita de um hospedeiro (humano, pelo que nos é dado saber) para subsistir e aceder a mutações.
E então, precavermo-nos, tanto quanto possível, do seu ataque afigura-se constituir uma racional, e logo sensata, atitude. Não serão absolutos os instrumentos de precaução e muito menos prodigalizarão um absoluto conforto. No entanto, são os mecanismos comuns, testados noutras situações – nomeadamente no que diz respeito às gripe, originada, igualmente, por um vírus também ele presente no mundo.
Se o universo dos homens tivesse atingido a maioridade e fosse capaz de regular-se a si próprio, não haveria necessidade de chefes, de governos, de polícia, de tudo, enfim, que regulamenta, de fora, a vida individual e colectiva. Mas a prevaricação contínua de homens contra homens, a ignorância, patenteada diariamente, quanto ao usufruto do mundo e à posição nele que a cada um diz respeito e tantos outros factores de ignorância ou desrespeito engendraram o poder outorgado a um grupo de pessoas ou por elas tomado à força.
Pode ser, inclusivamente, que esse vírus, o Covid, seja uma armadilha, um  minúsculo agente infeccioso produzido e espalhado no mundo com os mais malévolos intuitos, por uma élite apostada numa certa forma de selecção. Não descarto essa possibilidade já que ela representa uma suposta explicação; mas quero estender esta teoria ao vírus influenza, ao HIV e a todas as outras estirpes que surgiram um certo dia e para os quais não existe lenitivo absoluto. De qualquer modo somos nós, a humanidade no seu todo e os indivíduos em particular, que nos demitimos da nossa autonomia, do respeito que devemos a nós próprios e aos outros com quem estabelecemos laços,  não sendo capazes, por isso, de agir a nosso favor.
Quanto à referida  “falsa sensação de segurança” que a máscara confere ao utilizador, percebemos, à saciedade, que, sendo somente um recurso de eficácia relativa, não tendo poderes para combater o vírus mas tão somente de criar uma barreira, a máscara não deve ser considerada um antídoto, um remédio, uma barreira inexpugnável.

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