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Cultura, Literatura e Filosofia

“O INFERNO SÃO OS OUTROS”

Regina Sardoeira

“O inferno são os outros”, frase lapidar de Jean-Paul Sartre, filósofo importante da designada corrente existencialista, cujo sentido decorre do sentimento de náusea (o absurdo da existência humana), no contexto da sociedade dos homens.
A sentença é proferida por uma das personagens da peça de teatro Huis clos. Nela, duas mulheres e um homem encontram-se no inferno, condenados a permanecer para sempre juntos, “entre quatro paredes”.

As três personagens morreram e chegam ao inferno. Este, porém, não tem demónios nem fornalhas como na tradição cristã. É apenas um quarto fechado onde os três se vêem condenados a conviver uns com os outros.

Garcin, um escritor, queria ser um herói, mas foi cobarde. Ele teme que as suas duas companheiras de danação descubram a sua cobardia. Estelle é uma burguesa fútil que assassinou o bebê que teve com seu amante, e foge da própria culpa responsabilizando o destino. Inês, homossexual, funcionária dos correios, é agressiva e procura reforçar o sofrimento dos outros.
Confinados numa sala, sem espelhos, os três são obrigados a ver-se através dos olhos dos outros. Inês tenta conquistar Estelle, que, por sua vez, mostra interesse por Garcin. Inês joga um contra o outro, forçando-os a exibir as suas faltas. À medida que a convivência se torna insuportável, Estelle tenta matar Inês, que apenas ri, pois já está morta. Garcin tenta vingar-se amando Estelle diante de Inês.
Expostos em suas falhas, os três acabam chegando à conclusão formulada finalmente por Garcin : “o inferno são os outros”.
Numa entrevista, o dramaturgo e filósofo contou que a inspiração para a criação do texto surgiu de uma situação real: resolveu escrever uma peça para três amigos seus, actores, mas não queria que nenhuma personagem tivesse nela mais destaque do que a outra. Então pensou: “Como mantê-los sempre juntos em cena?”,  dúvida que levou à ideia de colocá-los presos no inferno, de modo que cada uma das figuras cénicas agisse como carrasco das outras duas. Ao incluir a célebre expressão, a peça sartriana reitera que o outro, na verdade, é fundamental para o conhecimento de si mesmo. O ser humano necessita relacionar-se com o outro para construir a sua identidade, processo nem sempre tranquilo e harmonioso.
Para o filósofo francês Jean-Paul Sartre , a maioria das pessoas não reconhece as suas falhas, preferindo culpar um factor externo qualquer. Esse factor normalmente são os outros. Por isso, a sua frase “O inferno são os outros” implica muitas interpretações erróneas, sendo normalmente entendida como a afirmação de que quem nos rodeia limita a nossa liberdade.
O facto de esta interpretação ser a mais difundida, apenas confirma o pensamento de Sartre: normalmente não assumimos as consequências dos nossos actos.
“O inferno são os outros” anuncia as dificuldades de ser existencialista, pois é preciso ter consciência de que somos responsáveis pelas consequências das nossas acções, e não cabe  buscar culpados para o nosso sofrimento.
Os outros  incomodam-nos não por tirarem a nossa liberdade, mas por lembrarem a todo momento que, já que somos livres, somos também responsáveis por tudo o que fazemos.
Assim, os outros deixam de ser culpados e reconhecemos a nossa própria culpa. O inferno está no facto de possuirmos consciência da responsabilidade que a liberdade acarreta, principalmente no mundo das nossas relações.
Acerca da liberdade e assumindo o seu ateísmo, Sartre leva ainda mais longe a sua concepção humanista, escrevendo:
“Se Deus não existe não encontramos, já prontos, valores ou ordens que possam legitimar a nossa conduta. Assim não teremos justificações para o nosso comportamento. Estamos sós e sem desculpas. É o que traduzirei dizendo que o homem está condenado a ser livre. Condenado porque não se criou a si próprio; e, no entanto, livre porque, uma vez lançado ao mundo, é responsável por tudo quanto fizer.”
Livre e no entanto, a cada momento,  sente junto de si uma outra presença que, em simultâneo é o seu reflexo,  nela se vendo como num espelho, e também o plano de fuga para o seu ressentimento, para alijar de si a própria responsabilidade.
Cada um de nós, neste momento inédito da condição humana, pode e deve reflectir acerca da liberdade que nos é outorgada no nascimento, tornada consciente anos mais tarde e que não desculpa erros e atentados a nós próprios e aos que nos rodeiam. Porque, diz ainda Sartre, “a existência precede a essência”: somos aquilo que de nós próprios fizermos e, na construção de nós a que chamamos existir, realizamos, de facto, o nosso verdadeiro ser.

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