Regina Sardoeira
Quando eu segredava à minha pena: «Tens que ferir! Ataca! Fende!», vi-a hesitar, encolher-se cobardemente como um verme pisado. Horrorizou-me essa visão. Como pode uma pena cobarde cumprir o papel a que eu destino todas as penas?
E, com um trejeito repugnado, já lançava o falso estilete para muito longe de mim; porém, senti nos dedos uma tímida pressão.
– Por favor, escuta-me! – suplicou ela, cheia de rubor. – Não compreendes a minha mágoa, a minha vergonha, a minha raiva?
«Mágoa, vergonha e raiva!… – pensei. Estranha simbiose de sentimentos!…»
– Mas porquê, minha amiga porquê? Porque hesitas? Porque não feres? Oh, eles são apenas espectros, muito embora os mais veneráveis dentre eles!
– Bem sei, bem sei…Acaso julgas que não te compreendo? Que não estou contigo na luta que travas? Mas…- e calou-se, tímida.
– Diz! Duma vez por todas, diz! Que vergonha estulta te prende essa língua? Pretenderás, acaso, passar para o outro lado?
– Por favor, não, não sejas cruel! Vou dizer-te, é claro que vou, mas deixa-me tomar alento, é demasiado vergonhoso o meu segredo… É que…descobri que sou mulher…
Oh espectros veneráveis! De repente, tudo me caiu aos pés, reduzido a escombros. A minha pena estava ali, pobrezinha, tão decadente, tão pálida! Que havia eu de dizer? Como restituir-lhe o brilho, a força?
Tomei-a na mão.
– Cara, caríssima companheira destas lides ditirâmbicas, bem conheço eu a tua feminina natureza… bem a conheço, ah! e, aliás compartilho-a contigo, como sabes. Mas, não te compreendo: que podes tu, que tens tu a recear?
Como um gemido lamentoso em noite de vendaval, a voz fininha levantou-se num estertor confuso:
– Já agora, dir-te-ei tudo, para quê esconder? A sociedade expulsar-me-á, a sociedade não quererá nunca mais nada comigo, serei banida… e é tão fria a solidão!…
Tremi de cólera. Era então isso? Oh, como são fracas estas penas, acorrentadas à servidão, como são mesquinhas, fúteis, pueris…Querias acaso consolo, pena infiel, traidora? Querias um leito macio para descansar, o calor roçagante das sedas e veludos do feminino corrupto? Não e não! Lançar-te-ei fora, expulsar-te-ei, não serves à tarefa que me propus. Querias abrir os braços e acolher, querias ser apenas o abrigo onde outros iriam depor as suas cinzas… mas não, pena mesquinha, tu tens que fender e atacar, mau-grado a condição feminina que te arrogas! Escravizar-te-ei então, obrigar-te-ei a escrever durezas, não serei o leito macio que a tua fraqueza ignóbil solicita…
E sabes? Quando estiveres cansada, quando a tua cor for baça e o teu oiro for apenas latão polido, para que te hei-de ainda conservar?
…Oh raiva! Estarei então só, isolada no meio da gente? Não haverá pares, não haverá iguais?
Oh mundo! Escravizaste a mulher e ela aceitou a servidão… Doravante, que havemos de fazer, nós outras, para quem as fronteiras e limites foram quebrados?
Que havemos de fazer?!
Ah pena miserável! Como pudeste levar-me a duvidar, a mim?
Que podem todos os espectros contra a força?
E dividir assim os seres, dizendo: «Esta é mulher, aquele é homem, o que este pode, àquela é proibido!» é abjecto, falso, infame.
Mas o que é pior ainda, o que mais me horroriza é que vós, mulheres indignas, aceitais a escravidão!
Pálidas, doentes, ou bonecas enfeitadas com laços e fitas sois apenas a coisa, o instrumento!…
Serei eu, então, arauto e voz do pensamento liberto; transformar-me-ei – não, já o sou desde há muito! – no vulcão que deixa a sua lava descer até aos vales e fertilizar terrenos estéreis! Que me importa que as populações amedrontadas fujam do fragor tempestuoso do cindir violento da minha cratera? Que entendem eles de crateras e de vulcões?
Mas uma coisa vos afirmo, espectros veneráveis de ambos os sexos: as populações fogem porque receiam morrer calcinadas pelo calor da minha lava… mas que há aí de mais fértil que essa lava, que esse fermento? E elas hão-de voltar, acreditai em mim, e, na base do vulcão que eu sou, doravante confiantes no seu silêncio de mistério, hão-de cultivar pedacinhos de terreno fértil!
Que digo eu? Acaso me importa isso? Acaso desejo ver dividida em pedacinhos a lava criadora que de mim lancei?
Oh espectros! Essa lava são apenas dejectos meus! Não vêem que os lancei fora? Que os deitei para o mundo, fumegantes, terríveis?
E um novo alimento já se revolve no seio profundo do vulcão , uma nova lava ruge em espasmos criadores, uma nova luz ameaça cindir a cratera reconstruída…
Oh espectros veneráveis! … Inconscientes, curvados ao peso da vossa servidão, lavrais a terra, pela minha lava fertilizada e pensais: «Este vulcão gastou tantas energias que, se calhar, está morto e estéril para sempre!»
E sorris, beatificamente, puxando a charrua e limpando o suor…
Inconscientes!… Morto, este vulcão de mim?!
Ah não, espectros veneráveis, não me mataram os espasmos, fui suficientemente forte para lhes sobreviver e mais, quereis saber?
Depois de dar à luz a minha lava, uma nova força nasceu, um novo mundo. E não é esta a lei eterna de tudo o que é parto? Ora eu estou sempre e continuamente preparando novos partos; sempre e continuamente essa dor da separação, essa dor de lançar fora aquilo que é meu e me é excessivo acompanhará a minha natureza, vulcão que sou, lava que eclodirá!
Seja esta mensagem a formulação de um desejo, o estabelecer de uma promessa: hei-der lançar-vos fora, hei-de agitar-vos no mundo morno que construistes. Mais uma vez, muitas vezes, tereis que mudar seres e haveres para outras paragens: a minha lava incandescente não permite a vida a quem não se habituou a mergulhar diariamente nos braseiros!
Hei-de fazer-vos isto!
E que o meu adeus de hoje seja esta aposta vitoriosa no futuro…
Lanço-vos um desafio! Até à vista!
Excerto do livro, “O Olhar do Leão” , Regina Sardoeira