Maria João Covas
Até ao início do seculo XX o que era importante num livro era o seu escritor. O ermita que ia para o campo, onde a inspiração ‘baixava’, sem ninguém por perto e assim se tornava muito próximo dos deuses.
Depois veio o editor, a pessoa que propiciava a liberdade de não ter de agradar a um mecenas e poder escrever o que quisesse. Aquele que amparava um ato criativo tão importante como a escrita.
Só nos anos 60 do século XX é que o leitor surge como parte integrante desta equação. Só a partir daí é que, nós, todos nós os que lemos livros, tivemos direito a ser vistos como o final de uma cadeia que se coloca em marcha através do trabalho árduo (e não divino) do escritor. Mesmo distinguindo entre leitores especializados, os críticos, e não especializados a verdade é que todos lemos o mesmo livro, mas interpretamos de forma distinta aquilo que sai das páginas deste objeto mágico.
É, pois, na perspetiva de leitora, compulsiva assumida, mas apenas leitora, que hoje me apresento diante vós e que, mensalmente, aqui estarei. Leitora que não pretende ser critica, mas apenas manifestar os seus sentimentos perante a criação de um determinado autor. Leitora de uma obra que pode, ou não, falar comigo.
O livro que hoje trago foi editado em 2017, pelo que podemos dizer que é um livro antigo. E é de um autor que por ser jornalista eu, leitora preconceituosa, levei algum tempo a convencer-me a lê-lo. Não, não é esse. É o outro. Estou a falar de Rodrigo Guedes de Carvalho e do seu “O Pianista de hotel”. Li, durante o confinamento, a sua mais recente obra “Margarida Espantada” e posso dizer que amei. Descobri um universo de mulheres, escrito magistralmente, por um homem, o que me levou a pedir, mentalmente, desculpa por só agora me ter rendido a ele enquanto escritor.
Da “Margarida” parti para este “Pianista” que acaba por me fazer reconhecer o Rodrigo como um escritor importante da nossa atualidade. “O pianista de hotel” é um livro que se lê bem, quer a nível vocabular, quer a nível da construção narrativa, mas que acaba por ser um livro duro. Porquê? Porque é sobre pessoas. Pessoas que poderíamos ser nós ou os nossos amigos, os nossos vizinhos. Pessoas, como nós, que sentem o peso da solidão, da perca, das verdades sentidas, mas não ditas, das mentiras que escondem fraquezas.
“O pianista de hotel” faz com que as personagens (e consequentemente o leitor) olhem, como num espelho, para os seus fantasmas, as suas limitações, as coincidências, que levam a desencontros condicionando um futuro que não será (ou talvez sim) o sonhado. Mas será que a vida não é feita de encontros e desencontros?
Achei que a música é muito importante neste livro, ou não fosse o Rodrigo, ele mesmo, um músico. Nesta obra a música funciona como um elemento unificador entre as personagens e, mesmo nos momentos em que ficamos a ver a vida passar, sem coragem para agir, é a música, ou o que fica dela, que acaba por nos levar, por nos mostrar o caminho a seguir. O desacerto de hoje pode ser a revelação de amanhã. A esquina que se dobra leva-nos a outro caminho e, consequentemente, a outro futuro.
Rodrigo Guedes de Carvalho apresenta-nos a vida de todos os dias, sem esquecer a profundidade e a interioridade de cada personagem. Estas personagens são gente que vence e são derrotados pelas situações e pelo correr dos dias. Mas a verdade é que são também eles super-heróis. Não daqueles que voam, mas sim dos que vencem a sua kriptonita, nem que seja pelo facto de aprenderem a lidar com ela. Superar a vida pode ser difícil, mas deixá-la fluir sem grandes frustrações é ainda mais custoso.
Sei que estou a ler uma obra ao contrário, mas a verdade é que deste ‘Pianista’ irei para os “Jogos de Raiva” como forma de me penitenciar perante um escritor que ia deixando passar ao lado. A si leitor, desta leitora apenas posso agradecer a paciência da leitura e pedir que leiam. Leiam os autores nacionais, aqueles que vivem o nosso tempo e partilham as nossas memórias e as nossas vivências. Tenho a certeza de que não se vão arrepender.