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O PODER DOS HOMENS, ESSE MITO

Ontem, enquanto ouvia o fragor das rajadas do vento, pensei no poder, isso mesmo, no poder que os homens outorgaram a si próprios, o poder dos reis, governantes, chefes, o poder instituído, estabelecido pelo qual a humanidade permite que a controlem: pensei nesse poder, enquanto escutava o vento. E soube, imediatamente, que um tal poder é nulo.

A natureza, que nada conhece dessas maquinações dos homens, detém, afinal, a totalidade dos mecanismos de domínio e, se quisermos mesmo ficar cientes do que, de facto, comanda a vida, precisamos ouvir a sua voz. Eu ouvi-a ontem à noite, e soube que os elementos naturais, escassamente compreendidos pelos homens e muito menos dominados, se vão sobrepondo e aniquilando a nossa ânsia de poder.

Vivemos uma soberana ilusão, tanto mais lesiva quanto vai criando pretensos organismos de dominação da natureza, como defesas para o homem que , para além de lhe destruir a autenticidade, não impede que, a espaços, essa ténue dominação se rompa e atinja o mundo humano de modo violento.

À frente da minha casa , no espaço comum do prédio, existe um gigantesco pinheiro manso. Está rodeado de cimento, cascalho, asfalto; e as suas raízes, poderosas, provocaram ondulações no tecido espesso da rua. Os seus ramos alongam-se sobre as casas e caem dele em certas alturas as aceradas agulhas que são as suas folhas.

Os residentes vão aceitando a sua icónica presença – ele já existia no local antes das casas e do prédio – mas eu sei que mais do que um se rebelou contra o pinheiro porque os ramos podem cair, a caruma suja, a rua tem lombas.
O pinheiro não sabe nada acerca destes pensamentos humanos, tão mesquinhos perante o seu poder, não sabe que foi conservado por um acto inteligente do arquitecto e que, talvez por essa razão, ainda esteja de pé. Não sabe nada disto: mas domina! E mesmo que o abatam ele deixará rebentos que o tornarão perene.

Múltiplos exemplos poderão ser observados. E são os paredões e muros da costa a tentar suster o ímpeto do mar e ele, qual gigante, a reivindicar o espaço para as suas vagas, e são os diques e pontes, feitos para deter a força das correntes, muitas vezes arrastados e engolidos nos seus torvelinhos, e são as construções dos abrigos humanos tidas como invulneráveis até que um terramoto, essa força medonha vinda das entranhas da terra, as lança por terra duma vez só.

Poder? Qual poder?

O domínio humano é urdido no artifício, no embuste, não se cria na força muscular ou na argúcia da inteligência mas nos simulacros inventados por uns para iludirem todos os outros, na ganância, no lucro, no trato subreptício, nas artimanhas cruéis. E tem como corolário o medo , a ignorância, a opacidade de todos os que vão deixando que lhes colonizem a vida.

Tudo o que é poder, humanamente falando, está condenado à falência, à ruína. Mas nesses trâmites, ilusórios quanto à sua legitimidade, mas reais nos seus efeitos restritivos, o planeta do homem e seu único habitat tornar-se-á cada vez mais um território hostil e a sociedade um logro irreparável.
Foram estas algumas das minhas reflexões advindas à consciência quando, ontem à noite, escutei a força indomável do vento a crescer em tempestuosas ondas de poder.

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