Regina Sardoeira
Perante a expectativa de um novo confinamento, na sequência de um agravamento da pandemia que vem assolando o mundo, ocorre-me perguntar: aqueles três meses, desde Março a Junho, resolveram o problema? Não, apenas contiveram os números! O vírus continuou a sua “viagem” e continuará, com medidas radicais ou sem elas! Sabe-se que um vírus, qualquer um, é um parasita e que, por essa razão, necessita de hospedeiros. A menos que surja um antídoto eficaz que o elimine, o covid vai persistir na sua senda infecciosa, mas cega. O vírus não é mau, simplesmente é! Existe. E depende de um corpo, de muitos corpos para continuar sendo. Se estivermos confinados, isolados, asseptizados, pode ser que lhe consigamos escapar. Mas a humanidade, gregária e logo social, não subsiste se se remeter ao indivíduo. A interrelacão é imprescindível. Foi a comunicação que possibilitou a hominização, com a linguagem, o uso das mãos e de ferramentas, a progressiva civilização, a cultura, a tecnologia, a ciência, a arte! Se pensarmos lucidamente veremos que o mundo não resistiria sem ligações de pessoas com outras pessoas; e hoje faz-se a uma escala e a uma velocidade tais que ninguém está, de facto, separado de outrem.
Confinarem-nos é destruir o que de humano vai resistindo em nós e transformarem-nos em simulacros. Confinarem-nos é provocarem o caos interior em cada um e, desse modo, destruir a capacidade de resistir. Confinarem-nos não resolve coisa nenhuma, não redime absolutamente nada, não melhora o mundo.
A solução é deixar que a praga, o vírus, portanto, passe sobre nós, se aloje onde quer que seja, destrua o que houver para destruir e depois se esconda, algures. Nenhum vírus foi eliminado até aos dias de hoje: mas o homem aprendeu a defender-se, a lidar com ele, a criar resistências. É necessária essa defesa e é imperativa essa aprendizagem assim como o são as resistências.
A ordem de confinamento vem dos governos, como imperativo. A ordem, emanada das chefias, obriga-nos a afastar-nos uns dos outros e não cria qualquer energia individual e colectiva que crie as próprias regras. A ordem vinda das elites que nos comandam é um atentado ao nosso discernimento, à nossa capacidade de tomar decisões.
Vivemos sob a ameaça do vírus e consequentes resultados do seu efeito quando nos parasita há tempo suficiente para sermos capazes de, sem normas vindas das entidades que nos governam, sabermos perfeitamente o que fazer. E, se não sabemos ainda, é porque nos deixamos ficar, tolhidos pelo pânico, à espera de ordens ( ou a procurar meios de contorná-las, insensatamente). Proíbem-nos de sair depois das 13 horas? Vamos antes e invadimos, feitos multidão, os sítios onde precisamos de ir! Impedem-nos de conviver em grupos, nas ruas e praças? Discretamente, convocamos os amigos, um a um, e convivemos em casa! Pomos a máscara porque é obrigatório e, sem ela não nos autorizam a entrar nas lojas e nos locais públicos: usamo-la, não porque consideremos que pode preservar-nos, mas porque foi instituída como obrigação. Não acredito no confinamento, nesta obrigatoriedade de ficar entre quatro paredes à espera que o vírus passe ou que a vacina surta efeito. Os meios têm que ser outros e devem provir de cada um, após a tomada de consciência do perigo que o ronda. Não acredito na informação propalada de um modo catastrófico, com notícias e números alarmantes com os quais se justificam, depois, as medidas. A informação precisava de ser pedagógica, instrutiva, esclarecedora e não alarmista, excessiva e contraditória.
Há praticamente um ano que lidámos com o vírus: como é possível que não tenhamos aprendido nada? Que forcemos a segurança, por um lado, expondo-nos desnecessariamente ao contágio ou, no extremo, que nos apressemos a aderir, cegamente, ao recolhimento imposto?
Sei perfeitamente que este confinamento obrigatório decorre da incapacidade de tratar todos os doentes que acorrem aos hospitais. Mas, se porventura as pessoas entendessem que a iminência do contágio é um facto e que basta um infectado num círculo para criar uma rede de outros infectados numa incrível progressão, não seria evitável o confinamento obrigatório?
Creio que o que verdadeiramente falta aos homens de hoje é discernimento, sensatez, autonomia; incapaz de se auto-determinar, o homem precisa da autoridade exterior, de leis vindas do topo da hierarquia social, de ameaças de multas e de prisão.
Desse modo, e porque sendo – lhe dada liberdade o homem não sabe o que fazer com ela e entra nos caminhos perigosos, aí está novo confinamento. Reitero a minha posição inicial: o confinamento é a última saída após a verificação de que, estando à vontade, livre para fazer o que quiser, o indivíduo humano não sabe estabelecer limites a si próprio.
E lamenta-se, Ah que Natal tão triste! Ah que passagem do Ano tão escura e sóbria! Não entende, por si mesmo, que não existe um Natal triste ou uma passagem do Ano escura, quando a lucidez acompanha o acto de parcimónia.
Parcimónia – eis a palavra-chave para estes tempos que surgiram pela força de um vírus.
Parcimónia – nas atitudes, nos gestos, no consumo, nos convívios, nas festas e em tudo aquilo que, sendo desmesura, pode ser nocivo e irracional.
Parcimónia – nas efusões e demonstrações exageradas de gestos comuns, mas tantas vezes realizados sem uma motivação verdadeira.
Parcimónia – tão racional que vise privilegiar o que é realmente essencial, afastando, de vez, tudo o que é supérfluo e inútil.
Esta palavra, parcimónia, antagoniza, efectivamente, o excesso que comanda os actos criativos, opõe-se, sem dúvida, à intrepidez e à audácia daqueles que têm mudado o mundo, simboliza uma espécie de mornidão incompatível com os grande voos da humanidade. Mas mesmo assim, é necessário perceber que há um tempo para cultivar o excesso, a audácia, o vôo, e outro para parar, em silêncio, e reflectir. E então, o tempo que agora decorre, em que se torna manifesta a impotência para lutar frente a frente com um inimigo invisível e insidioso, deve ser de contenção e de respeito. Contenção nos gestos, respeito pela nossa humana condição.
A contradição paira no tempo de agora: somos os mesmos mas, em simultâneo, outros de nós. Ainda queremos o que desejávamos antes, mas novas realidades suscitaram novos e incomuns desejos.
É absolutamente imprescindível compreender este tempo de agora.