Regina Sardoeira
A palavra liberdade pode ter mais do que um sentido e igualmente a palavra servidão. Ser livre, enquanto parte do colectivo (e não, não há margem!), é respeitar e cumprir o dever. Ser livre, vivendo em sociedade, não corresponde a fazer tudo aquilo que queremos, no momento exacto em que o queremos, mas sim, interiorizando o facto de sermos indivíduos incluídos numa comunidade (e não há escapatória), cumprir o dever que qualquer consciência lúcida saberá muito bem o que é. A servidão, num sentido não pejorativo, e logo sinónimo de cumprimento do dever, obriga-nos a universalizar a norma da nossa acção e agir, apenas, se pudermos fazê-lo. Logo, a servidão será auto-servidão porque resulta da nossa vontade que aceitou, em termos tácitos, pertencer a um certo país (somos portadores, por exemplo, de um cartão de cidadão que nos integra na sociedades portuguesa, com a sua Constituição e demais leis). E assim, ser cidadão é cumprir o dever da pólis, ajustando-nos constantemente a ele. Havendo esse ajuste, a servidão não é exterior a nós, não seremos escravos mas autónomos porque, de um modo ou de outro, contribuímos para a legislação que nos rege.
De facto, uma análise superficial e puramente egocêntrica, levar-nos-á a considerar que somos escravos, na medida em que as leis sociais pesam sobre nós, impondo-se à nossa vontade. Porém, alargando a perspectiva de análise, veremos, de imediato, que tais leis foram ratificadas por nós, nos múltiplos actos sociais que realizamos no mundo.
Vejamos.
Vivemos num sistema político designado como democracia. A democracia permite que qualquer cidadão escolha os seus representantes, através do voto e, mesmo abstendo-se, votando em branco ou anulando o boletim de voto, o cidadão fica sujeito a tudo o que resultou da eleição. Pode ser considerado um sistema injusto, na medida em que as minorias não verão respeitada a sua vontade, precisando de submeter-se ao veredicto da maioria. Mas esta é, decerto, uma falha insolúvel do sistema que, com todos os seus defeitos, é tido como o melhor de todos.
A democracia gerou as leis através de pessoas eleitas pelos cidadãos para tal efeito. A partir desse momento cada indivíduo dessa comunidade deve respeitá-las, sob pena de um número variado de sanções.
Pouco importa que defendamos princípios diversos daqueles que dirigem o país onde vivemos.
Um anarquista , por exemplo (cuja linha de pensamento se afasta das orientações derivadas do sistema democrático e propugna, liminarmente, uma sociedade sem Deus nem chefes, crendo que a ordem, depois de instalada a desordem, brotará naturalmente) aceitando viver num país regido por leis democráticas, deverá submeter-se a elas. Pode permanecer anarquista, no seu foro íntimo, pode discutir a viabilidade das leis com que não concorda, pode aplicar a sua ideologia nas quatro paredes da sua casa…mas lá fora, no mundo em que aceitou viver, deve respeitar a lei.
Imaginemos esse anarquista e suponhamos que ele quer tirar a carta de condução. Para fazê-lo, necessita estudar o código das estradas, memorizá-lo, fazer um exame onde mostre conhecer as regras, que deverá aceitar e depois cumprir, no acto da condução. Imaginemos que ele quer frequentar uma escola e licenciar-se. Deve, também nesse caso, adaptar-se às regras da escola que escolheu. Se percorrermos todas as áreas da vivência desse anarquista, integrado numa sociedade democrática, perceberemos que, invariavelmente, ele vai negar as suas tendências libertárias e assumir os princípios e as leis do mundo em que vive.
Logo, ser livre, em democracia, implica sujeição (ou servidão) a regras que não foram feitas por nós, é certo, mas a que vamos dando aval aceitando viver socialmente no contexto de uma sociedade democrática.
Paradoxal? Sem dúvida. Situação capaz de gerar revolta, angústia, desespero? Óbvimente. Mas cabe a cada um analisar-se a fim de perceber como resistir num mundo que, desse modo, é alvo da sua rejeição.
Há, decerto uma solução para o nosso revoltado anarquista.
Assisti há dias a um filme, baseado numa situação real ,”A incrível História de Giorgio Rosa”, acerca de um homem que, cansado das imposições do sociedade em que vivia , decidiu fundar a sua própria ilha, o seu país.
Tal obra foi um feito de engenharia.
Já nos seus quarenta anos, Giorgio Rosa decidiu, em 1967, que esse era o momento ideal para se lançar no projecto de uma vida. Desenhou os planos, recrutou trabalhadores, colocou-os todos num barco e aventurou-se para lá das águas territoriais do seu país.
No papel, a Ilha das Rosas não era mais do que uma plataforma com 400 metros quadrados, erguida sobre pilares de aço, 26 metros acima das águas do Adriático. Em espírito, era muito mais do que uma mera construção: era a derradeira libertação de um homem que estava cansado das taxas, impostos e um sem número de imposições governamentais. O contexto é importante, até porque se viviam os loucos anos 60 do sexo, drogas e rock’n’roll.
Giorgio tornou-se o “príncipe dos anarquistas” que construiu o seu próprio país na costa italiana.
A ilha artificial tinha uma bandeira e um posto dos correios — e era ponto das festas mais concorrido da zona.
Erguia-se, imponente, nas águas quentes do Adriático. Eram 400 metros quadrados de paraíso, a pouco mais de dez quilómetros de Rimini, na costa italiana. Não era apenas um feito de engenharia: era o sonho de um homem que ali quis criar a sua própria nação.
“Acabou mesmo por construí-la, o que é um feito incrível dada a complexidade da coisa. Fê-lo em apenas seis meses, com a ajuda de quatro amigos e um pequeníssimo grupo de trabalhadores. Teve que inventar ele próprio tecnologia que permitisse fazer a construção, tinha muito orgulho nisso.”, revela à “BBC” o produtor do filme Matteo Rovere, que pediu a bênção a Rosa para avançar com as filmagens, ainda antes da sua morte em 2017.
“Ele não estava sequer muito interessado na própria história, mas mostrou-se entusiasmado quando nos falou sobre toda a tecnologia que criou para conseguir construir a ilha.”
Por essa altura, o que estava para lá da linha dos dez quilómetros da costa era uma espécie de terra de ninguém. Foi esse o rastilho do desafiador sonho do engenheiro italiano.
“O meu pai era uma pessoa precisa, atenta aos detalhes, muito organizada. Era um engenheiro à alemã. Excepção feita, claro, a esta veia de loucura que o levou a querer criar uma ilha só para si e transformá-la num estado para lá das águas territoriais, algo que o tornou numa espécie de príncipe dos anarquistas”, revela o filho, Lorenzo Rosa, à BBC
Nos registos, a data de 24 de junho de 1968 ficou assinalada como a da fundação deste pequeno estado que nunca nenhum país reconheceu. Os que rodeavam Giorgio Rosa acreditavam que este era um acto de verdadeira loucura. Desde logo porque se tratava de um mero engenheiro a tentar criar uma ilha artificial no alto mar.
Lorenzo Rosa tinha apenas sete anos quando visitou a Ilha das Rosas pela primeira vez, ainda na sua fase de construção. Cinquenta anos depois, justifica a aventura do pai com a sua frustração perante as regras estritas do governo, aplicadas desde a década de 50.
“Ele estava farto disso tudo (…) Tinha as suas próprias ideias do que era a liberdade. Não queria fazer nada imoral, pelo contrário. Ele era um homem de ética que apenas já não conseguia suportar tantas restrições e regulamentos”, confessa ao “The Times”.
Ainda recorda com entusiasmo as visitas à ilha. Viviam em Bolonha, a cerca de uma hora e meia de carro de Rimini, e ainda era necessário fazer a segunda etapa da viagem de barco. Por isso, a partida era sempre madrugadora, pelas quatro ou cinco da manhã.
“Eu adorava a ilha, era uma experiência fabulosa. Estar com o meu pai era um privilégio, porque ele trabalhava arduamente como engenheiro e ainda trabalhava na ilha nos tempos livres, onde gastava o seu próprio dinheiro — e ele não era rico. Tinha que trabalhar muito para cobrir as despesas.”
Um sonho ficou mesmo por cumprir: elevar a plataforma para lá do piso único, para uns impressionantes cinco pisos, apesar das dificuldades sentidas durante o inverno, por causa dos ventos e da ondulação.
Para Giorgio era um sonho tornado realidade. O filho adorava as viagens à ilha. Os convidados também. Sem surpresas, quem não ficou a sorrir no meio de toda esta história foi o governo italiano.
Apesar de a plataforma estar fora das suas águas territoriais e, teoricamente, fora do seu raio de acção, os governantes tentaram de tudo para interromper e pôr fim às festas animadas que recorrentemente enchiam a plataforma. A publicidade só ajudou a dar ainda mais fama à Ilha das Rosas, que se tornou num símbolo de liberdade e de diversão.
Talvez ainda mais disparatada foi a acusação de que a Ilha das Rosas representava uma ameaça ao país, por servir de posto de controlo para submarinos soviéticos.
Giorgio Rosa manteve sempre a sua posição: não estava a violar qualquer lei e, por isso, o estado italiano não tinha o direito de mandar fechar a ilha.
“Tentaram pagar-lhe para a abandonar, mas ele queria mostrar que a ilha era, acima de tudo, um acto de liberdade”, explica Rovere.
Com ou sem argumentos, a verdade é que a 11 de fevereiro de 1969, 55 dias depois da declaração, as autoridades italianas navegaram até à Ilha das Rosas e, com recurso a explosivos, derrubaram a plataforma.
Rosa morreu em 2017
“Acusaram-no de tudo para tentarem arruinar a sua reputação. Até sugeriram que havia submarinos russos por baixo da plataforma. E chegaram a dizer que ela era perigosa e instável. Bem, eles precisaram de três rondas de dinamite para a destruir”, sublinha Lorenzo Rosa.
Mesmo depois da destruição da micro-nação, o governo não deu descanso ao engenheiro. Em casa, recebeu um envelope a exigir o pagamento de todas as despesas da operação de demolição: 11 milhões de liras, o equivalente a cerca de 5.700€.
Apesar de ser uma situação insólita, a história permanece desconhecida para a maioria dos italianos. “É o tipo de coisa que os avós contam aos netos em Rimini. É uma história famosa, mas apenas na cidade”, explica o produtor.
Giorgio Rosa morreu em 2017 com 92 anos. Durante décadas, a destruição do seu pequeno estado foi uma espécie de tabu, algo que o entristecia.
“Nunca falava sobre isso e sempre que alguém puxava o assunto, ele ficava tristíssimo, embora nunca recusasse responder a perguntas”, conclui Lorenzo.
(Fonte: www.nit.pt)
Depois desta digressão em torno da Ilha Das Rosas, cuja história conta o filme que citei, convido todos os anarquistas, fascistas e quejandos, ávidos de barafustar contra o sistema que tanto os oprime a juntarem-se, finalmente, e a construírem a sua ilha. Verão, por fim, que, à semelhança do que acontecia já nas suas terras de origem, terão que criar um estado, com governo, leis, bandeira, moeda, etc. tudo o que fez Giorgio Rosa, na sua Ilha das Rosas, não conseguindo, de todo, levar a sua arrojada ideia a bom termo.